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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Opinião: As dores do cinema latino

Por Camila Moraes, publicado orginalmente no Opera Mundi

Se a América Latina fosse uma pessoa em terapia, e o cinema, o divã sobre o qual ela se deita para elaborar seus traumas, seria possível afirmar que, nos dias de hoje, a região é um paciente mais “em contato consigo mesmo”. Sem supor que a solução para todos os males passe pela psicologia, a metáfora aqui serve para dizer que o cinema latino-americano superou a fase de raiva e críticas desnorteadas e tornou-se capaz de elaborar melhor suas dores – as dores que cada país trata em seus filmes mais relevantes – como um ser humano em processo de entender melhor de onde vem para então vislumbrar novos caminhos.

Essa evolução, resultado de vários aspectos relacionados às experiências sociais, culturais e políticas de cada lugar, acontece como no consultório: de maneira sutil, perceptível só depois de se instalar. Saem os filmes nostálgicos, os que denunciam em primeiro plano nossa coleção de traumas (colonialismo, ditaduras, corrupção, crises, entre tantos outros), e entram as histórias cotidianas, bastante pessoais e ainda assim políticas, porém, não didáticas. Como já sintetizou a crítica norte-americana B. Ruby Rich, entre cujas áreas de interesse está o cinema latino: “From the revolutionary to the revelatory” (do revolucionário ao revelador).

Ao falar de cinema latino-americano hoje, felizmente é possível abarcar muitas das cinematografias do subcontinente, e não só o México, a Argentina e o Brasil, tradicionalmente os maiores produtores de filmes na região. Os dois últimos são em grande parte o objeto de estudo de um livro lançado recentemente sobre o novo cinema sul-americano, o “New South American Cinema” (Ed. Faber and Faber UK), de Demetrius Matheou, disponível no Brasil apenas por encomenda. Mas é apenas uma questão de recorte: Uruguai, Chile, Peru, Colômbia e, em menor grau, países como Venezuela, Paraguai e alguns representantes da América Central, como a Guatemala, tem visto seus esforços resultarem em uma produção independente de grande importância, ainda que lutando constantes e duras batalhas contra a imposição hollywoodiana nas salas comerciais para poder aparecer.

O “New South American Cinema”, que por sua vez cita B.Ruby Rich, trata desse tema: como a estabilidade econômica gradual de alguns países latino-americanos, junto ao fim da censura ditatorial, permitiu que os cineastas possam novamente se expressar e, com isso, contribuir para a criação de cinemas autorais que dão conta da construção de identidades nacionais e da recuperação da memória. O livro é recheado de entrevistas, entre elas uma com Walter Salles, um dos pilares da retomada do cinema brasileiro, que diz: “Não acho que sejamos países cujas identidades tenham sido plenamente cristalizadas ainda. De alguma maneira, nossos filmes captam essas sociedades em movimento; captam essas sociedades à medida que elas estão se encontrando”.

No Brasil, o território (vasto, variado, incontrolável) é um tema recorrente; uma dor (sempre que escapa à ordem e ao progresso) tratada com certa insistência em “filmes sobre o sertão” ou “filmes de favela”, etiquetas frequentes na hora de se analisar a produção nacional de meados dos 1990 em diante. Quais seriam as dores dos vizinhos? Se tomarmos Pablo Trapero e Lucrecia Martel, grandes do nomes do atual cinema da Argentina, por exemplo, temos os males da ditadura.

Em “Mundo grua”, de Trapero, uma figura marginal vive uma busca interminávelpor emprego. Em “O pântano”, de Martel, a classe média falida de uma cidade letárgica se impõe vivendo de influências passadas. Nesses filmes, premiadíssimos e de enorme valor autoral, não aparecem de frente os militares, a repressão do governo ou as injustiças sociais, senão seus resquícios, as instituições que o alimentaram e sustentaram – como é o caso das classes abastadas na Argentina ou em qualquer país onde haja sobrevivido um sistema ditatorial. É a vez de escutar a voz o povo, reverenciar a cultura popular.

Cena inicial de "Mundo Grua", de Pablo Trapero






Ver-se na tela (e sem maquiagem)

De onde vêm essas dores cinematográficas? Obviamente, dos padrões comuns de experiência dos realizadores de cada lugar. Na Colômbia, o conflito interno que vive o país há quase 60 anos fez da violência um ponto obrigatório do cinema nacional. Do lado do público, o colombiano se queixa. Ou não enche as salas, quando o filme troca cenas de ação e sexo por sequências lentas do dia-a-dia de um jovem que se refugia em uma vila de pescadores amedrontada pela violência para se recuperar de dramas pessoais – como é o caso de “El vuelvo del cangrejo”, de Oscar Ruiz Navia, um filme que não ignora o conflito, mas não tenta esmiuçá-lo, preferindo se ater às suas consequências.

Para a pesquisadora Juana Suárez, autora de “Cinembargo Colombia – Ensayos críticos sobre cine y cultura”, é como um espelho: “Há realidades que são levadas à tela, o colombiano as vê e se sente horrorizado, como uma pessoa que não suporta se ver sem maquiagem”. Segundo ela, há um tipo de espectador que espera “que o cinema faça propaganda da nação, mas o cinema não trata disso”.

Trailer de "Abril Despedaçado", de Walter Salles




Cinema não é mera crítica social, mas, sempre que se manifesta sob os mandamentos da Arte, brilha se for capaz de ser crítico, construir identidades e gerar memória, além de oferecer prazer estético ou mero entretenimento. Claro que, para que ele alcance tão nobres objetivos, o espectador entra na equação.

Filmes como os que realizaram os cineastas latino-americanos mais talentosos dos nossos tempos não são daqueles que se contam sozinhos ou que gritam suas palavras de ordem em megafones. Dependem do espectador para (re)construí-los, saboreá-los e perpetuá-los, permitindo que eles cumpram seu nobre papel. Quem se arrisca?

*Camila Moraes é colaboradora do Opera Mundi e escreve sobre cinema no blog La Latina

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