Por Chico Sant’Anna*
Nas redes sociais foi possível
acompanhar dia-a-dia a jornada de doze jovens que desejaram singrar as águas
do Mediterrâneo para denunciar um genocídio que se perpetra contra o povo
palestino na Faixa de Gaza. O barco partiu da Itália em 1º de junho para
conscientizar sobre as condições de fome em Gaza. Mais do que levar donativos,
alimentos, próteses ortopédicas infantis, a meta era elevar o conhecimento
público sobre o sofrimento do povo palestino de Gaza, submetido há mais de uma
década a um bloqueio injusto e desumano por Israel. Segundo dados do Escritório
da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), 1,3 milhões de
habitantes de Gaza dependem da ajuda internacional para sobreviver
Originalmente, era para ser outra embarcação. Entretanto, o barco Conscience, da coalizão internacional Flotilha da Liberdade, foi atacado por drones na madrugada da sexta-feira (2/5), na ilha de Malta. Os ativistas deram sequência em um veleiro de nome Madeleine. O nome é atribuído a uma pescadora artesanal palestina, que ainda busca no Mediterrâneo alimentos para seu povo. Mas chama a atenção o fato de Madalena ter sido a mais importante das mulheres que seguiram a jornada de Jesus Cristo, desde a Galiléia, e que ao lado de Maria presenciou a crucificação pelos romanos.
A jornada de Madeleine não foi ignorada pelos militares de Israel. Relatos postados nas redes sociais pelos integrantes da jornada davam conta que ainda em águas internacionais foram alvo de ataques de drones que, segundo suas denúncias, lançavam sobre o veleiro Madelein líquidos químicos.
Faltando um dia para chegar a Gaza, novo ataque
aéreo precedeu a tomada do barco. Embora estivessem em águas internacionais,
todos foram detidos por forças de assalto israelenses. Desde então, o tema
praticamente desapareceu na mídia brasileira, embora um dos tripulantes fosse o
comunicador brasiliense Thiágo Ávila, um dos coordenadores da missão.
De diferentes nacionalidades, essa dúzia
de Dons Quixotes colocou sob risco a própria integridade física para demover os
moinhos da indiferença das grandes potencias internacionais. Queriam dar um
grito em alto e bom som, capaz de ser ouvido nos cinco continentes. Sua missão
pacifica: denunciar mundialmente o que se passa com dois milhões de palestinos,
muitas mulheres e crianças, que lutam cotidianamente contra a fome e as balas.
Ao lançar-se nessa jornada esperavam pautar na chamada mainstream media mundial um tenebroso tema que parece estar se
naturalizando cotidianamente nas páginas de jornais, nas telas do
telejornalismo e nas ondas radiofônicas.
A grande imprensa brasileira deu pouco
ou quase nenhum espaço à missão dos pacifistas. Provavelmente Gandhi sofreu da
mesma indiferença quando lutava pela independência da Índia, ocupada pelos
britânicos. A cobertura da jornada foi praticamente inexistente. Apenas as
redes sociais, em especial o Instagram, cobriam o cotidiano da Flotilha da
Liberdade. O telejornal de maior audiência do Brasil, o Jornal Nacional da TV
Globo, se limitou a dar uma “lapada” – termo que designa uma nota jornalística
curta, com narração em off, no dia em que as tropas israelenses tomaram de
assalto o pequeno veleiro.
Com correspondentes no mundo inteiro, inclusive
em Israel, não trouxe nenhuma repercussão. Imagens disponíveis nas redes
sociais, praticamente, não foram usadas. Um vídeo compartilhado pela Coalizão
Flotilha da Liberdade (FFC) mostrou os ativistas sentados com coletes
salva-vidas e as mãos levantadas ao ar enquanto as forças israelenses entravam no
barco. Os passageiros podiam ser vistos jogando celulares ao mar.
No dia seguinte, o Jornal Hoje, da
mesma emissora, se limitou a noticiar a libertação da ativista ambiental sueca
Greta Thunberg, também presa pelas tropas israelenses. Nem mencionou o nome de
Thiago Ávila. Israel foi inteligente em deportar a pessoa com maior visibilidade
internacional, dessa maneira, contribuía para desmobilizar correspondentes das
grandes agências internacionais.
A tática parece ter dado o resultado
esperado. Dois dias depois, mesmo com a manutenção da prisão do brasiliense
Thiago Ávila – agora em solitária – o tema não mais sensibilizava os gatekepers tupiniquins que, parece,
desagendaram as notícias sobre os onze pacifistas que permaneceram presos. Nem
mesmo as agendas e iniciativas oficiais do governo brasileiro, no Itamaraty e
no Palácio do Planalto, sensibilizaram jornalisticamente as principais mídias
brasileiras. Salva e honrada exceção do Correio
Braziliense e, em parte o portal Metropoles, veículos da Capital Federal, onde nasceu e mora Thiago Ávila
com sua família.
A postura da maioria dos veículos da
imprensa brasileira rasga todos os livros de técnica jornalística. Ineditismo e
proximidade geográfica são regrinhas básicas de noticiabilidade que se aprende
nos manuais universitários. Além disso, ensino os especialistas, a seleção das
informações a serem divulgadas deverem ser guiadas por valores sociais,[1] mas no interior da imprensa, os
conteúdos são avaliados em função da origem dos fatos, da fonte que
disponibiliza as informações e pode se dizer também em função de quem será
incomodado com a difusão de determinado tema.[2]
A ingerência externa no processo de newsmaking
acontece com maior ênfase quanto aos aspectos de propriedade, de noticiabilidade, e de inclinação, o ângulo de abordagem da informação.[3]
O que se viu na jornada da Flotilha da Liberdade foi mais do que um caminhada pelo bem estar dos palestinos. Nas águas do Mediterrâneo uma segunda batalha se fez presente. A luta pela visibilidade pública. Ao se lançarem ao mar, os ativistas queriam interferir nos critérios de noticiabilidade, forçar a porta vigiada pelos gatekeeper.
Para subverter o padrão de relações, garantir o êxito de ter selecionado um tema de seu interesse e obter a aparência midiática, alguns atores sociais elaboram estratégias bastante complexas. Tradicionalmente, se valem de uma técnica denominada pelos pesquisadores em Comunicação de image choque. Buscavam apelar aos sentimentos, às emoções, a sensibilidade e a simpatia do espectador/leitor/internauta. Tais técnicas visam dotar o discurso do sentido desejado, tocar dimensões sensoriais e cognitivas do cidadão comum e, por via de consequência dos meios de Comunicação.
A grande mídia brasileira, contudo, ignorou as regras das cartilha de
jornalismo. Curiosamente, o site da BBC Brasil – veículo britânico – foi um dos
principais a produzir e difundir noticiário denso, inclusive focando em
ativistas não europeus que estavam a bordo.
Por que será que o é notícia para a
BBC difundir para todos os continentes não sensibiliza a mídia nacional? Certamente
não foi pela falta de matéria prima, de informações e mesmo de imagens, pois além
das agências internacionais de notícias, a Coalizão Flotilha da Liberdade (FFC)
cotidianamente disponibilizava material via plataformas de redes sociais. Não
foram poucos os veículos que fizeram entrevistas com os ativistas nos dias que
antecederam o ataque de Israel.
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Na grande maioria dos veículos da mídia nacional, a prisão em solitária, a deportação e a chegada de Thiago Ávila ao Brasil foram fatos ignorados ou tratados como registros de menor importância. Pior, ignorou-se as marcas e hematomas no corpo dele, cicatrizes atribuídas a sessões de tortura física a que teria sido submetido, inclusive com uso de aparelhos de eletrochoque. Imagens do Instagram de Thiago Ávila |
Mesmo as emissoras de TV e grande parte da imprensa local da Capital Federal - exceto casos especiais como o do Correio Braziliense - onde vive Thiago Ávila e onde estão os órgãos federais e a Embaixada de Israel, pouco ou nada informaram sobre os desdobramentos pós prisão por Israel.
Será que essa invisibilidade
proporcionada pela imprensa brasileira fruto de uma eventual postura de maior simpatia
a Israel do que aos Palestinos? Porquê ignorar ações que se opõe ao Estado
Judeu? Serão interesses econômicos? Xenofobia? Lucratividade?
Não tenho a resposta, mas num mundo em que a circulação de informação é cada vez mais um ação de poder político e econômico, como numa luta de David contra Golias, os pequenos, recomenda o sociólogo francês Olivier Voirol, recorrer cada vez mais a métodos de obtenção de visibilidade, formas de criação de eventos, que perturbem os arranjos político midiáticos em vigor.[4]
* Jornalista Profissional, Mestre em
Comunicação pela Universidade de Brasília e Doutor em Ciências da Informação e
da Comunicação pela Universidade de Rennes 1, na França
[1] FERRY,
Jean-Marc, (1991). Les transformations de la publicité politique.
In: Hermes, N° 4, Le nouvel espace public,
pp. 15 – 26, Paris, CNRS, p.25.
[2] MATHIEN, Michel, (1992). Les journalistes et le système médiatique, Paris, Hachete,
p. 180-81.
[3] RIEFFEL, Rémy, (1984). L’élite des journalistes, Paris, PUF, p 130
[4] VOIROL,
Olivier, (2005). Les luttes pour la visibilité – Esquisse d’une
problématique. In : Visibilité/Invisibilité,
Réseaux vol. 23, n° 129-130, pp 89-121, Paris, FT R&D/Lavoisier. p.103.