Por Elaine Tavares, Jornal Brasil de Fato, em 15/06/2009
“A imprensa é o cão guardador da casa pátria”, adverte Martí, e os jornalistas cubanos seguem à risca o conselho do grande colega
Dezembro de 1956. A pequena ilha de Cuba fervilhava diante da possibilidade de uma mudança radical. A ditadura de Fulgêncio Batista recrudescia, como é comum aos regimes que estão morrendo. No começo do mês, um pequeno grupo de homens iniciou uma caminhada que só teria fim com o triunfo da revolução. Apesar da chegada trágica, com o barco encalhando e muitas vidas se perdendo, 22 dos 82 que vieram do México conseguiram montar um foco guerrilheiro ao pé da Sierra Maestra. Junto com eles estava o argentino Che Guevara que, em muito pouco tempo na selva, tratou de inventar um jeito de divulgar notícias que fizessem o contraponto à mídia cortesã. Ele sabia que perdendo a guerra informativa, perdia tudo. Assim, no meio da floresta criou a primeira célula da imprensa rebelde com um velho mimeógrafo no qual imprimia manifestos e até um jornal.
Logo o argentino conheceu o sistema cubano responsável pela transmissão de informações do MR-26, movimento do qual saíra Fidel: a rádio bemba, espécie de boca-a-boca, eficiente e eficaz, que percorria toda a região rural da ilha. Então teve a idéia de criar, desde a sierra insurgente, uma rádio de verdade, a Rádio Rebelde. Era o mês de fevereiro de 1958 quando quatro combatentes, sob o comando de Che, colocaram no ar a primeira transmissão. "... Aquí, Radio Rebelde, la voz de la Sierra Maestra, transmitiendo para toda Cuba en la banda de 20 metros diariamente a las 5 de la tarde y 9 de la noche, desde nuestro campamento rebelde en las lomas de Oriente”. Com esta frase iniciava um dos mais importantes veículos de comunicação da guerrilha. Foram vinte minutos nos quais se denunciou os crimes da ditadura, se informou sobre os combates na sierra, as ações dos lutadores, e divulgou-se uma série de informações ao povo cubano sobre como agir diante da presença dos rebeldes. Começava também uma profunda relação de cumplicidade e confiança entre os “jornalistas” e a gente cubana. Não é sem razão que hoje, 51 anos depois desta histórica transmissão, a figura do jornalista cubano esteja intimamente ligada aos ideais da revolução. Quem afirma é o presidente da União de Periodistas de Cuba, Tubal Paez, que esteve em Florianópolis para a XVII Convenção Nacional de Solidariedade a Cuba, promovida pela Associação Cultural José Martí de Santa Catarina.
Mas, se voltarmos na história, veremos que esta relação entre os jornalistas e os anseios populares não era uma novidade naqueles dias de 1958. Foi a imprensa, conforme conta o escritor Ramón Becali, que começou a difundir na Cuba colonial, lá pelos idos do setecentos, a idéia de uma pátria livre. E o maior de todos os jornalistas cubanos, José Martí, fez de sua vida e de sua obra um ato sublime de amor à liberdade cubana. Assim, um país que contou com a pena de um Martí, não poderia ter jornalistas diferentes. “Não merece escrever para os homens, aquele que não sabe amá-los”, ensinava.
“Em Cuba os jornalistas são críticos, porque é nossa função ser crítico. É o que nos ensinou a revolução, é o que ensinam na escola e é o que a união dos jornalistas exige. Defendemos a revolução, mas aquilo que é mal feito, nós criticamos”. É assim que o jornalista sintetiza a missão dos jornalistas na ilha revolucionária. Ele reafirma que, lá, os jornalistas foram e são protagonistas da mudança. Desde o começo das lutas de libertação houve grupos de jornalistas atuando e ajudando na transformação. “Ser protagonista do processo revolucionário é bom, mas às vezes há jornalistas que exageram na retórica ou no louvor. Até porque nós temos por princípio a idéia de informar, opinar e defender o país que está sob bloqueio há 50 anos e numa guerra em que o inimigo procura semear a desesperança. Isso, por vezes, é um problema, mas estamos sempre vigilantes”.
É certo que esta imbricada relação dos jornalistas com o processo revolucionário provoca outra maneira de olhar a realidade. “Se estamos diante da construção de um hotel, por exemplo, a primeira questão que a gente se coloca é: isso vai proteger o país ou não? Em que lugar do mundo um jornalista se põe estas questões? Só em Cuba. Isso pode ser bom, mas pode ser ruim também, caso vire um vício. É por isso que no nosso código de ética a gente coloca como falta grave tanto a apologia quanto o triunfalismo. Nosso propósito deve ser a crítica. Falamos de tudo o que ruim, dos sacrifícios que a população tem de passar. Mas também falamos da resistência”.
Tubal Paez conta ainda que na ilha caribenha também existem outros “jornalistas”, que assim são designados pelo Departamento de Estado estadunidense, e lá estão, fazendo suas reportagens “independentes”. Isso tudo é tolerado porque a população cubana tem educação suficiente para diferenciar a verdade da mentira. “Escrever para um povo alfabetizado politicamente não é coisa fácil. O povo está muito preparado para julgar tudo aquilo que o jornalista faz”. Também é certo que em Cuba ainda existe gente que prefere o anexionismo, que os Estados Unidos invada a ilha e que tudo volte a ser como antes, quando a ilha era um quintal dos ricos estrangeiros. Mas são poucos.
Liberdade de expressão
Quem fala que em Cuba não há liberdade de expressão não conhece Cuba. “Se assim fosse minha mãe estaria na prisão”, brinca Tubal. “Porque ela é boa na crítica ao que está mal”. Na verdade, como explica o presidente da UPC, Cuba é o país onde existe o maior número de imprensa de oposição. Só para que se tenha uma idéia, existem 32 emissoras de rádio transmitindo todos os dias desde a Flórida, sempre com conteúdo especificamente contra Cuba e contra o socialismo. “O governo estadunidense liberou este ano mais de 34 milhões de dólares para estas emissoras e, deste montante, 18 milhões são para pagar jornalistas, escritores, locutores, que vendem sua mão e sua voz na intenção de gerar desesperança entre os cubanos”. Além das emissoras de rádio ainda há uma emissora de TV, cinicamente chamada de TV Martí (nome do mais importante revolucionário cubano, também jornalista) que transmite diariamente conteúdo anti-Cuba com um sinal que é gerado por aviões que sobrevoam a ilha. “São, portanto, mais de 1900 horas semanais de informação anti-governo, o que nos faz crer que não há governo no mundo que tenha tanta oposição”.
Além disso, estão em Havana mais de 160 jornalistas que são correspondentes estrangeiros, podendo transmitir o que quiserem, sem qualquer censura. “Já os Estados Unidos sim não podem falar de liberdade de expressão, porque eles proíbem que um jornalista cubano esteja lá olhando e reportando. Então, quem precisa ter liberdade?” Tubal lembra que o único espaço onde os Estados Unidos permitem a presença de um jornalista cubano é nas Nações Unidas, mas ele só pode falar do que se passa ali, mais nada. “Isso é ou não censura? E quem a pratica não é o regime cubano”.
A democracia
Tubal Paez comenta as investidas do presidente estadunidense Barak Obama, quando este coloca como condição na mudança de relação com Cuba a questão da democracia. E questiona a chamada “democracia” do mundo capitalista que fica inviabilizada dentro de um sistema em que há tanta desigualdade econômica. “Como pode haver democracia numa sociedade dividida entre pobres e ricos? Que democracia é esta em que só os ricos podem ter os meios de comunicação, por exemplo? O fato é que no mundo capitalista quando se fala que as coisas devem mudar em Cuba no que diz respeito à democracia, isso significa sempre um passo atrás. Já para nós, mudança significa sempre um passo adiante”.
O jornalista cubano insiste que a democracia cubana é radicalmente diferente da que caracteriza o mundo liberal burguês. Lá, as pessoas não participam da vida política apenas uma vez a cada quatro anos. A participação é uma coisa entranhada no cotidiano. Tubal é parlamentar e conta que em Cuba uma pessoa que se candidata a um cargo público não faz campanha como nos países capitalistas, em que o dinheiro comanda o voto. “Em Cuba, ninguém se apresenta à comunidade dizendo o que vai fazer. Ele se apresenta dizendo o que já fez. Os candidatos visitam juntos os eleitores e são submetidos ao escrutínio dos seus atos passados. Depois, uma vez eleitos, eles precisam prestar contas anuais dos seus atos como representante. Essa é a nossa democracia que cada dia vai se aperfeiçoando. Não é perfeita, mas vamos avançando”.
Ele lembra que quando Cuba tinha o multipartidarismo o que imperava era o dinheiro. Até o prédio da Câmara nacional foi construído a semelhança do Capitólio e ali, segundo Tubal, foram aprovados os piores projetos contra a soberania nacional. O povo não tinha vez. “A minha mãe, que tem 85 anos, mostra como um orgulho a sua cédula eleitoral daquele dias antes da revolução. Está branca. Ela nunca votou. Dizia que jamais se prestaria àquela farsa. Hoje não há partidos.. Quem decide é povo, diretamente na sua comunidade. Isso, para nós, é um avanço”.
A comunicação é prioridade
A obsessão informativa de Che e Fidel no início da revolução segue sendo uma diretiva entre os cubanos. As rádios são veículos fundamentais e todas as cidades têm a sua. Além disso, os grupos organizados também têm as suas mídias, sempre com alcance nacional. As mulheres, os camponeses, os jovens editam suas revistas, seus programas, enfim, passam suas pautas a toda a nação. O jornalista, para exercer a profissão em Cuba, precisa ser formado em curso universitário de jornalismo, o que também não é nenhuma novidade visto que lá, a formação universitária é estimulada e garantida a todos. “Hoje, com a explosão dos meios de comunicação estamos vivendo uma situação em que há mais postos de trabalho do que jornalistas formados, então estamos buscando gente nas áreas afins como a de Comunicação Social”. Tubal Paez explica que um jovem recém formado já tem assegurado o seu posto de trabalho tão logo saia da faculdade, o que também mostra a abissal diferença entre o regime cubano e a realidade de competição capitalista.
Em todo o país o contingente de jornalistas chega a quatro mil, com mais 700 estudantes prontos a se graduar. E ainda assim faltam profissionais. A considerar a população cubana que é de 12 milhões de pessoas, dá para perceber o quanto a informação é importante. E não basta a informação somente, ela tem de ser de qualidade, daí a necessidade da formação universitária. “Em Cuba nós não trabalhamos com esse jornalismo de espetáculo, não tem essa coisa de assalto a banco, nem bandos de mafiosos”.
Outra especificidade da imprensa escrita cubana é a quase inexistência da propaganda de produtos. “Nós somos muito pobres, o papel é caro. A publicidade estimula o consumismo e cria necessidades. Por isso não usamos o pouco que temos a disposição para este tipo de coisa”. Em Cuba os meios de comunicação não são todos estatais. A maioria é de propriedade social, o que significa que quem controla é a comunidade. Esta também acaba sendo uma diferença tremenda na relação com o mundo capitalista. “Estes veículos acabam se sustentando com a venda de seus produtos, mas é claro que o Estado não lhes dá as costas, porque a comunicação é uma coisa estratégica em Cuba”.
Já no campo da internet os cubanos ainda sofrem muita restrição. “Mas não é porque o governo não queria que o povo tenha acesso. O que acontece é que os Estados Unidos proíbem que os cabos de banda larga sejam conectados a Cuba. Nossa banda é estreita e então a prioridade acaba sendo para as instituições sociais”. Para se ter uma idéia dos efeitos do bloqueio, todos os serviços oferecidos pelo Google, que hoje são utilizados automaticamente pelos internautas do mundo todo, estão fechados para Cuba. “Estas são questões que ainda estamos tratando de resolver. O bloqueio nos causa grandes problemas, mas também nos coloca desafios. E o povo cubano, nestes 50 anos de revolução tem dado respostas à altura”.
E assim segue a vida na pequena e resistente ilha cubana. Enquanto o gigante império trama contra a revolução as gentes seguem ouvindo o chamado del Che insurgente, iniciado naquele distante 24 de fevereiro de 1958, com a voz do capitão Luiz Orlando Rodríguez: "...Aquí Radio Rebelde, la voz de la Sierra Maestra, transmitiendo para toda Cuba en la banda de 20 metros diariamente a las 5 de la tarde y 9 de la noche, desde nuestro campamento rebelde en las lomas de Oriente”. E a mesma rádio, ali está, há 51 anos, um a mais que a revolução, informando e formando o povo cubano. Não mais no acampamento em Sierra Maestra, mas sempre rebelde, infinitamente rebelde, tal como toda a comunicação.
“A imprensa é o cão guardador da casa pátria”, adverte Martí, e os jornalistas cubanos seguem à risca o conselho do grande colega.
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