Por Chico Sant’Anna[1]
A cobertura que a sociedade brasileira vem sendo obrigada a
consumir sobre a chamada “desoneração da folha” nos leva a questionar que tipo
de jornalismo está sendo ofertado. Pessoalmente, arrisco a dizer que seria um
“jornalismo de interesse”, no qual os meios de comunicação buscam sensibilizar
a opinião pública e, consequentemente, pressionar o parlamento e o governo a
conceder o benefício de redução da contribuição previdenciária a um seleto
grupo de 17 segmentos da economia nacional, dentre eles, a própria imprensa, em
especial as emissoras de rádio e TV. Um jornalismo em proveito próprio.
Essa não seria a primeira vez que isso ocorre na esfera
pública brasileira. Para citar um caso mais recente, o processo de privatização
das empresas de telefonia e telecomunicações. Como várias das empresas
jornalísticas tinham interesse econômico nessa privatização, em especial da
Embratel, responsável à época por transmitir os sinais de rádio e TV, a
cobertura sempre foi simpática ao processo, mesmo diante das denúncias de
irregularidades que culminaram com a demissão do então ministro das
Comunicações, Mendonça de Barros.
Há uns três anos, cotidianamente, a imprensa bate na mesma
tecla. E apesar da insistência no tema, a abordagem editorial não é nem honesta,
nem ampla o suficiente para o cidadão, o contribuinte, e muito menos, plural.
Em nenhum momento, por exemplo, é dito qual a diferença dos valores a serem
arrecadados por um método e pelo outro. A imprensa tão ciosa em reduzir o
déficit público; que defendeu reformas previdenciárias que levaram ao arrocho
dos trabalhadores, se cala sobre os efeitos dessas regras contributivas no
caixa do INSS.
Contrato com o leitor
No jornalismo tradicional existiria um contrato com o leitor
estipulando a responsabilidade das informações transmitidas serem autênticas. A
noção de “contrat communicationnel”, desenvolvida pelo linguista francês e
especialista em Análise do Discurso, Patrick Charaudeau[2],
vincula implicitamente o jornalista ao leitor, determina um elo à veracidade,
se não à verdade dos fatos, que não se faz presente na publicidade e na
literatura. Embora o autor tenha se referido ao profissional, ao individuo,
creio que a avaliação deve ser estendida ao meio de comunicação ao qual está
vinculado, uma vez que trabalha sob normas editoriais, na maioria das vezes,
feitas sob medida para atender ao grupo econômico que mantém a mídia, em
questão.
Na mesma linha, Eugênio Bucci[3],
afirma que a atividade jornalística tem como cliente o cidadão, o leitor, o
telespectador. Nesse sentido, o jornalista se obriga – em virtude da qualidade
do trabalho que vai oferecer – trazer a informação mais transparente e para
isso, ouvir, por exemplo, lados distintos que tenham participação numa mesma
história. Ouvir todos os envolvidos, buscar a verdade, fazer as perguntas mais
incômodas para as suas fontes em nome da busca da verdade é um dever de todo jornalista.
Meu pirão primeiro
Reduzir os gastos com encargos sociais tem sido uma rotina
das empresas midiáticas nacionais. Historicamente, muitas delas se apresentam
ou se apresentaram, como inadimplentes costumaz para com o INSS. Grandes
grupos, como o Jornal do Brasil, Manchete, Gazeta Mercantil, Tupi, dentre
outros, ao falirem deixaram rombos impagáveis da Previdência Social – inclusive
de valores que foram debitados do trabalhador - e também do FGTS. Sempre se valeram
de “criatividade” para burlar essa responsabilidade patronal. Primeiro, foi a
eternização dos free lancers, que ganhou a paradoxal alcunha de frelancer fixo.
Ou seja, a informalidade permanente. Contrataram via empresas terceirizadas ou
cooperativas de trabalho, que comiam parcela importante do salário do
profissional. Por fim, investiram na transformação do trabalhador pessoa física
em pessoa jurídica, em empresa, mesmo que fosse empresa de uma só pessoa.
As mudanças de legislação fomentadas pelos governos de
Michel Temer e Jair Bolsonaro trouxeram mais segurança jurídica – termo que a
mídia adora – permitindo que esse formato de contrato, até então considerado
burla da legislação trabalhista, fosse reconhecido pelo STF. Dependendo das
letrinhas do contrato como PJ - que deixa de ser trabalhista e passa a ser de
relação comercial -, não haverá direitos tradicionais como Licença Gestante, de
Saúde, 13º salário, FGTS, férias e até mesmo limites de jornadas de trabalho e
pagamentos de hora extra, ou adicionais noturno, insalubridade ou
periculosidade.
Nenhum desses detalhes é exposto pela mídia nacional ao
contribuinte-espectador, em especial aos trabalhadores celetistas, que correm o
risco de perderem no futuro mais benefícios securitários na hipótese de novo
rombo na Previdência. A imprensa que é tão ciosa pelo chamado controle das
contas públicas não revela em quanto isso pode impactar o equilíbrio
orçamentário.
Empregos
O argumento pra defender tal benesse é o da geração de
empregos e aumento de renda. Mesmo assim, não vem a público quanto novos
empregos foram gerados e quanto o salário médio cresceu além da inflação nesses
17 setores, desde a concessão dessa isenção fiscal em 2012. Buscam sensibilizar
informando que são os segmentos que mais empregam e ameaçam com demissões ou
redução de salários se não forem atendidos. Nesse ponto, a comunicação
governamental também falha. Deveria botar os detalhes em público.
Entretanto, a se pegar o setor jornalístico, segundo dados
da Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj, a redução dos gastos
previdenciários não resultou assim em mais empregos ou melhores salários, pelo
menos não na mídia. Apesar do benefício da desoneração da folha, o mercado de
trabalho formal de jornalistas encolheu 21% em nove anos (2013-2021) Mesmo o
espectador mais desatento perceberá que grandes nomes do telejornalismo já não
mais estão na telinha. Até nas novelas e na transmissão de eventos desportivos
a faces e vozes são novas, algumas até então desconhecidas. Não sei que impacto
isso tem dado no Ibope.
Segundo a presidente da Fenaj, Samira de Castro[4],
com base em estudo do Dieese, houve um “um visível enxugamento dos empregos com
carteira assinada, sobretudo nos veículos jornalísticos tradicionais”, a
chamada mainstream media. Não consegui a variação da renda média do jornalista,
no mesmo período. Mas a renda média em 2021 apresentava um rendimento (salários
mais adicionais e gratificações) de R$ 5.745,30, bem modestos para um segmento
empresarial que tanto fatura
[1]
Jornalista, pesquisador científico, PhD em Ciências da Informação e
Comunicação, pela Universidade de Rennes 1 - França e Mestre em Comunicação
pela Universidade de Brasília.
[2] CHARAUDEAU,
Patrick. (1997). Le discours
d’information médiatique – La construction du miroir social. Paris, Nathan
[3] BUCCI, Eugênio,
(2006). Jornalistas & assessores de
imprensa, profissões diferentes requerem códigos de ética diferente. In: Observatório da imprensa, Ano 11 –
nº 397 – edição eletrônica de 5/9/2006, Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=397JDB001
[4] In: Fenaj – News
letter de 03/01/2024: Mesmo com
desoneração da folha, mercado de trabalho formal de jornalistas encolhe 21% em
nove anos
Um comentário:
Parabéns Chico Santana. Texto claro, preciso, abrangente, revelando a extraordinária lucidez do autor. De inquestionável oportunidade.
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