Por Marcelo
Zero e Gerson Gomes
A revista Época publicou, na semana passada, matéria intitulada Louvor e Distinção, que trata da
obtenção, por Aloizio Mercadante, do título de doutor em ciências econômicas
pela Unicamp.
A “reportagem”, digamos assim, tem um texto longo, repleto de
insinuações maliciosas combinadas com informações requentadas que são de
domínio público há mais de 15 meses. Trata-se, sobretudo, de texto profuso e
inconsistente, no qual ilações fantasiosas substituem os fatos, algo pouco
apropriado à comunicação jornalística. Parece mais um pastiche de algum
imitador pouco talentoso de Cervantes tentando escrever uma novela policial.
O subtexto, contudo, é bastante claro. Mercadante teria obtido seu
título de doutor indevidamente, já que a tese é baseada em livro anteriormente
publicado e sua aprovação foi facilitada por uma banca “banguela”, composta
basicamente por “amigos”.
Pois bem, o fato da tese apresentada estar baseada no livro
“Brasil: A Construção Retomada”, publicado meses antes, é um segredo da
carochinha, ao contrário de ser uma “revelação”, como chegou a ser divulgado. Isso
foi devidamente registrado, como a própria reportagem reconhece, na introdução
da tese de Mercadante. O orientador sabia, a banca sabia, a Unicamp sabia e os
que assistiram à defesa da tese, inclusive os jornalistas, sabiam. O próprio
Aloizio Mercadante levou um exemplar do livro para a sua arguição, como
demonstra, aliás, foto que consta da reportagem. No dia seguinte à defesa, 18
de dezembro de 2010, o Brasil inteiro soube. Aparentemente, só o autor da
“reportagem” ainda não dispunha dessa informação.
Todos os envolvidos também sabiam que apresentar tese baseada em
livro é perfeitamente condizente com as regras acadêmicas. A Unicamp exige somente que o trabalho tenha “contribuição
original em campo de conhecimento determinado”. No entanto, a matéria pontifica
que a tese foi aceita mesmo “sem uma contribuição ao conhecimento que pudesse ser considerada
original”.
Bem, uma afirmação desse tipo, pedante e peremptória, demanda,
normalmente, um cuidado essencial: a leitura da tese. Evidentemente, o autor da
matéria não se deu ao trabalho de ler uma única vírgula, nem do livro
publicado, nem da tese. Se o tivesse feito, teria verificado que a tese se
debruça sobre temas teóricos e análises econômicas, políticas e sociais que
estão ausentes do livro publicado, cumprindo, assim, com as exigências
acadêmicas pertinentes. A sua estrutura é bem diferente da estrutura do livro.
Ela tem seções teóricas que não existem no livro, e, por outro lado, a obra
publicada tem capítulos que não estão na tese. Até mesmo as séries históricas
dos dados empíricos utilizados são diferentes. Uma simples, rápida e
descomplicada consulta aos índices de ambas as obras permitiria verificar essas
diferenças.
Caso o autor da “reportagem” tivesse lido a tese, teria verificado
também que a versão definitiva que foi publicada no site da Unicamp incorpora
várias das sugestões feitas pela banca, na árdua arguição. Com efeito, a banca supostamente
“banguela” fez, como a própria reportagem menciona, muitos questionamentos,
alguns bastante duros, que foram levados em consideração, na elaboração do
texto definitivo da tese. Aliás, a reportagem se compraz em mencionar, um por
um, todos esses questionamentos, sem, no entanto, mostrar as respostas de
Mercadante, as quais foram levadas em consideração para a obtenção do título de
doutor, tal como ocorre em qualquer defesa de tese.
Mas não são somente as respostas que estão ausentes da reportagem.
Na realidade, o grande ausente da matéria é seu suposto objeto: a tese de
Mercadante. No melhor estilo “não li, e
não gostei”, a reportagem fala sobre tudo, menos sobre o conteúdo real da tese.
Nela, a única informação relevante sobre a tese de Mercadante é de que ela
elogia o governo Lula. Isso é o suficiente. Isso é o suficiente para
desqualificá-la. Isso é o suficiente para retirá-la do debate público. Isso é o
suficiente para agredir pessoalmente o autor, o orientador da tese e os membros
da banca.
De fato, no afã de desqualificar tudo o que cheire a um mínimo reconhecimento
do governo Lula, a “reportagem” não teve sequer o cuidado de poupar grandes
intelectuais do Brasil, figuras de projeção nacional e internacional como Maria
da Conceição Tavares, Delfim Neto, Luiz Carlos Bresser Pereira e José Manuel
Cardoso de Melo. Todos dispensam apresentações. O autor da matéria, no entanto,
parece não conhecê-los, pois supõe, em seu delírio, que eles poderiam
comprometer seu enorme prestígio intelectual e pessoal apenas para agradar
Mercadante.
Ricardo Abramovay, um dos grandes sociólogos do país, cuja tese de
doutorado foi escolhida pela ANPOCs como a melhor tese de ciências sociais de
1991, é apresentado simplesmente como “o pai de Pedro Abramovay”, que foi
secretário nacional de Justiça no governo Lula. Mariano Francisco Laplane, o
orientador, que concluiu seu mestrado em Berkeley sob a orientação de ninguém
menos que Manuel Castells, obteve o título de doutor na Unicamp e fez um prestigioso
pós-doutorado em Oxford, aparece, no libretto
giocoso elaborado pelo autor da matéria, fundamentalmente como um mero
“amigo” de Mercadante. No caso de Laplane, a “reportagem” rompe com qualquer
resquício de decência e insinua que a aprovação da tese de Mercadante teria sido
recompensada por um cargo no Centro de Gestão e Estados Estratégicos (CGEE), embora
tenha recebido todas as informações que comprovam que o nome de Laplane foi
selecionado por um Comité de Busca e aprovado, de forma unânime, por um
colegiado composto por membros de várias instituições, como a Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências. A
tentativa de, levianamente, envolver essas instituições no complô fabricado pelo
autor da peça “literária” é inaceitável.
Na ópera-bufa encenada na “reportagem”, todos esses respeitados intelectuais,
de matizes ideológicos muito diferentes, aparecem como personagens duvidosos de
um enredo caviloso destinado a conceder, de forma imprópria, o título de doutor
a Mercadante. Como “provas”, se mencionam algumas amizades comuns e simpatias
políticas. O fato concreto é que, da banca examinadora, apenas Ricardo
Abramovay, suplente de Maria da Conceição Tavares, que não conseguiu
comparecer, pode ser considerado “amigo” de Mercadante. Delfim Neto e Luiz
Carlos Bresser Pereira, que também aprovaram a tese, jamais foram amigos de
Mercadante. Por outro lado, não temos conhecimento de bancas examinadoras
compostas por desafetos pessoais e políticos. Se Mercadante é amigo ou conta
com a aprovação de alguns grandes intelectuais, ponto para ele. Observe-se que,
à exceção de Maria da Conceição Tavares, que não participou da banca, nenhum
desses intelectuais jamais foi membro ou militou pelo PT. Luiz Carlos Bresser
Pereira, diga-se de passagem, foi um dos fundadores do PSDB. É inacreditável
que a “reportagem”, na ânsia de desqualificar a tese não lida de Mercadante
tenha procurado atacar, de forma tão baixa, pessoas tão qualificadas.
Talvez se Mercadante tivesse apresentado uma tese apenas com severas
críticas ao governo Lula, a matéria fora de outro cariz, possivelmente com rasgados
encômios ao autor, ao orientador e aos membros da banca.
A bem da verdade, a tese de Mercadante também analisa alguns
gargalos, não suficientemente enfrentados pelo governo Lula, ao crescimento
brasileiro e faz severas advertências sobre a possibilidade da interrupção do
novo ciclo de desenvolvimento do país. O autor, caso tivesse lido a tese,
poderia, ao menos, ter salientado esses pontos da obra, conforme as suas
conveniências políticas.
É pena que revistas como Época não tenham se empenhado em promover
um debate público sobre a tese. Debater idéias e argumentos é sempre uma boa
forma de promover a democracia e nos engrandecer como cidadãos. Já atacar, em
nível pessoal, quem tem posições discordantes, como faz o autor da “reportagem”,
não engrandece ninguém. Como bem disse Gore Vidal a respeito de alguns
republicanos, eles são pequenos, eles só
são competentes para difamar pessoas.
Época e seu público mereciam algo melhor. Não custava muito.
Bastava ter lido um dos parágrafos finais da obra, o qual afirma que:
....um dos objetivos desta tese é se contrapor à má-fé intelectual
que se apoderou de alguns meios conservadores. Esperamos ter tido êxito, pelo
menos nesse aspecto.
Pelo visto, Mercadante fracassou. Ainda tem gente que prefere a má-fé.
Sem distinção.
As opiniões aqui publicadas são de responsabilidade de seus autores
Nenhum comentário:
Postar um comentário