Por José Dirceu, publicado no Blog do Noblat
No debate sobre os destinos do setor de telecomunicações no país, do qual tenho participado ativamente, já abordei a importância de avançarmos na construção de um marco legal que regulamente as atividades de mídia e, na semana passada, ressaltei as resistências, pautadas em interesses monopolistas, às transformações no ramo de TV por assinatura em decorrência da Lei 12.485/2011.
Procuro manter a discussão acesa, a partir de algumas reflexões sobre o papel de uma TV pública no Brasil. E o ponto inicial é a constatação de um grave processo de abandono e de reorientação do modelo de funcionamento da principal TV pública do país: a Cultura. Esse debate bem que poderia se dar em torno da questão “a TV Cultura corre risco de desaparecer se o governo do PSDB em São Paulo seguir a atual política?”. Mas deixemos essa questão latente.
Possivelmente, o maior exemplo de rede pública de televisão seja a BBC britânica, referência para quem busca um caso bem-sucedido. Mas há bons exemplos também em outros países, com destaque para a Europa, onde as TVs públicas têm papel importante e são qualificadas. No Brasil, esse nunca foi um debate tratado com a relevância que tem, muito provavelmente porque o nascimento da televisão aqui se deu pela iniciativa privada, portanto, de caráter comercial. Além disso, a criação de TVs públicas ocorreu durante a Ditadura (1964-1985), associando uma iniciativa importante a um regime que impôs sofrimento à população.
Nesse sentido, é preciso desmistificar o que deve ser uma televisão pública, com frequência, confundida com uma TV estatal ou de defesa do governo. Na verdade, o que a diferencia é seu objetivo maior, o de atender ao interesse público. Em linhas gerais, uma rede particular se preocupa com os ganhos comerciais —portanto, pauta-se por interesses privados, pelo lucro—,enquanto a pública se volta aos interesses da sociedade.
Esses são os critérios cruciais na definição da programação. Por exemplo: um hipotético programa em horário nobre sempre será produzido e mantido no ar numa rede privada se trouxer retornos financeiros, mas numa rede pública o retorno pode ser preservar e resgatar nossa história.
Tal recorte fundamental traz consequências no restante da cadeia produtiva associada à atividade de comunicação televisiva. Professor de Jornalismo da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Laurindo Lalo Leal Filho destaca esse aspecto, ao apontar as diferenças no tipo de formação profissional decorrentes de um viés privado ou público.
“O profissional da emissora pública tem de estudar qual serviço deve ser prestado à sociedade, que tipo de aspiração, distinta do que é oferecida pela TV comercial. É uma lógica completamente diferente que gera, obviamente, um tipo distinto de programação e de profissional”, afirma.
Esse é o ponto nevrálgico da questão em torno da TV Cultura. A lógica política empregada pelo PSDB na condução da emissora está impregnada em demasia pela percepção privada em uma televisão que deve ser pública. Cada vez mais, a emissora se orienta pelo controle de custos, como se seu objetivo fosse dar lucro.
É claro que ninguém defende desperdício de verbas, mas o investimento que representa um programa educativo na formação das futuras gerações não pode ser desprezado nesses cálculos.
O problema, portanto, é que o modelo de TV pública foi contaminado pelo modelo privado. E isso precisa mudar. Porque a referência de qualidade dos programas da TV Cultura está se perdendo ao longo do tempo por conta dessa lógica de controle de recursos repassados à emissora.
Até há pouco tempo, programas infantis da TV Cultura figuravam como ameaças aos enlatados dos canais privados, mas perderam fontes de financiamento e saíram da grade. A sociedade saiu prejudicada com isso.
Paralelamente, cresce o espaço a atrações privadas na TV Cultura, substituindo programas de interesse público. Nessa questão, é importante ressaltar que os programas privados podem até ser qualificados, mas se pautam por outros interesses e colaboram para reduzir o espaço dos programas de interesse público.
O que precisamos é o inverso. Uma política de Estado nas comunicações que vise apoiar o processo educativo e a informação de qualidade exige que trabalhemos para fortalecer os espaços públicos na TV brasileira.
É preciso, portanto, aprofundar o processo de unificação das TVs públicas no país, inaugurado com a Lei 11 652/2008, que criou a Empresa Brasil de Comunicação e instituiu o Sistema Público de Comunicação.
As TVs públicas têm um importante papel na construção de valores democráticos, na qualificação educacional, na difusão de informações imparciais e na formação de profissionais que se guiem pelo interesse da sociedade. Não podemos perder isso de vista.
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