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domingo, 16 de maio de 2010

Opinião: A publicidade e o consumo infantil

Por Clóvis de Barros Filho, em Revista Luz. Foto: Heitor Shimizu

A oportunidade de poder falar de um tema tão delicado me é muito cara. A questão da publicidade voltada ao público infantil e do consumo dessa faixa etária é uma preocupação pessoal de longa data. Bastante reforçada, reconheço, pela existência que tanto me orgulha de minha filha, hoje com seis anos. O que preocupa a mim, e acredito ser o mesmo motivo que preocupa os outros pais, é ver minha filha completamente imersa em um mundo fantástico de possibilidades de consumo que lhe é apresentado como maravilhoso. Desde sempre, encontramos no discurso do marketing a grande missão de encontrar e satisfazer as necessidades das pessoas. Trabalho benevolente, salvador. O que seria de nós sem essas sedutoras soluções? Então, cabe a pergunta: quais as necessidades das crianças? Diversão? Fantasia? Certamente. Educação? Amor? Saúde? Sem dúvida. E mais tantas outras que não poderíamos citar sem deixar este artigo longo demais. Mas, será mesmo que são essas as necessidades que impulsionam a gigantesca e bilionária indústria (US$ ou R$ 130bi/ano no Brasil) que tanto preza nossas crianças? 80% da publicidade de alimentos voltada às crianças é de produtos com alto teor de gordura, muito calóricos, pobres em nutrientes. Temos aí um forte indício de que não são estes, acima, os principais fatores motivadores da atuação da indústria no mundo infantil.
A necessidade de acumulação de capital constante fez com que as empresas subitamente tivessem que diversificar seus clientes. Lembremos, por exemplo, o recente lançamento de uma empresa de cosméticos de um creme anti-rugas para pessoas de 25 anos. O mesmo é válido para crianças. As empresas, em sua fúria pelo lucro cada vez mais ampliado, viram nesse público uma grande oportunidade. Necessidade do lucro. Irrefreável. O único motor das empresas. O único fator capaz de movimentá-las em um sentido, e de parar qualquer atividade, se não acontecer. Mas a pergunta que fica no ar é: como ela faz isso? Pela publicidade, que deixou há muito tempo de ter um discurso objetivo. Deixou de tentar convencer. Não estimula mais o logos, a razão. Passou a seduzir. Mexer com as emoções mais primárias. Quanto menos palavras, melhor.
Mas, a publicidade seduz para quê? Por que invocar e estimular as mais primitivas estruturas do inconsciente? Por um simples motivo: é ali que se encontra a maior fragilidade da nossa psique. É por esse caminho que se consegue uma compra por impulso, sem passar pelo crivo da razão, que certamente imporia barreiras lógicas difíceis de serem transpostas por um discurso que pretende criar uma realidade alternativa, melhor forma de vender um produto. Conheço uma excelente psiquiatra que conseguiu reduzir a compulsão de uma de suas pacientes pedindo que realizasse o simples gesto de dar uma volta no andar do shopping antes de comprar qualquer coisa. A conta do cartão de crédito que chegava ao salário de um juiz diminuiu 75%. Perceba que ali não havia uma decisão racional de compra, mas sim o impulso, o desejo, ambos vindos do inconsciente.

O jogo de sedução
Mas, voltemos às crianças. Como dito, a publicidade explora aquilo que de mais frágil há em nós. Por quê, então, tamanho interesse no mundo infantil? Já podemos supor que haja nas crianças uma fragilidade ainda maior, em relação ao mundo adulto. Mas pondero que a fragilidade não é só das crianças. Brevemente, informando que 80% das compras domésticas passam diretamente pela vontade da criança, pondero que há nos pais também grande fragilidade. De contato com as crianças, de conhecimento sobre o que se passa no mundo infantil, de autoridade. Houve uma completa inversão de posições. Quem manda são os pequenos. Está nessas fragilidades o principal interesse das corporações. Seduzindo as crianças há uma enorme possibilidade de “reter na fonte” o salário dos pais. Há muito menos barreiras. Tanto na própria psique infantil quanto na relação destas com os pais.
Vimos anteriormente que a publicidade seduz, explora os mais primários desejos de nosso inconsciente. Mas, se for assim, por que nas crianças haveria maior vulnerabilidade? As crianças não dispõem do leque de possibilidades existenciais que os adultos dispõem. Para elas, é muito mais difícil visualizar o rol de possibilidades que estão à sua escolha, e acaba refém daquela que se apresenta no seu dia-a-dia e no cotidiano de seus colegas, justamente através do discurso publicitário. As necessidades grandemente exploradas no mundo infantil são a do pertencimento e da identidade. Ambas fundantes da vida em sociedade. Pois não há sociedade sem união de pessoas em grupos e não há sociedade em que não seja possível reconhecer-se como indivíduo perante o outro.
A publicidade busca, a todo momento, estimular essas duas necessidades. Consumindo, a criança será aceita como consumidora, consumindo, será aceita no grupo de consumidores daquele produto, será afastada dos não-consumidores daquele mesmo produto, e, portanto, terá uma existência social alegradora. Critérios que antes eram uma certa habilidade no jogo de queimada, uma certa capacidade de contar piadas, entre tantas outras, hoje são voltados quase que exclusivamente para o mundo do consumo.
Vejamos os celulares, por exemplo. O celular com mp3 insere a criança num universo, o que tem câmera, em outro, o que tem Bluetooth, em um terceiro. O que tem o celular com todas as funções ao mesmo tempo consegue um destaque no mundo infantil, adquire para si as características positivas atribuídas ao produto. Apropria-se do status social do produto.
A publicidade estimula as crianças a estabelecerem critérios de seleção dos membros de seus grupos através do consumo, assim como estimula as próprias crianças a projetarem nos produtos aquelas características que desejariam para si mesmas, a inserção em um grupo social, a diferenciação social dentro desse grupo e entre outros grupos, o glamour, e por aí vai. Um exemplo fácil de entender é a relação das crianças com a boneca. Antes, brincar de boneca era um ato maternal. A criança era a mãe da boneca. Hoje, a boneca é uma projeção daquilo que a criança deseja. A criança não mais é a mãe da boneca, é a própria boneca.
Assim, a publicidade está no centro do comportamento infantil, levando as crianças para onde quer, a partir de suas necessidades de pertencimento e identidade, explorando sua fragilidade psíquica e os fracos laços que as ligam aos pais. Esta é uma questão que, certamente, merece muita atenção e discussão por todos que prezem minimamente pela vida das próximas gerações.

Fontes consultadas: Instituto Alana, Anvisa, revista Exame
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e em jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, é mestre em Science Politique pela Université de Paris III e Doutor em Ciências da Comunicação. Obteve a livre-docência pela Escola de Comunicações e Artes da USP e atualmente é professor de ética da USP.

As opiniões aqui postadas são de responsabilidade de seus autores

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