Fotos: Roberto Parizotti/Brasil de Fato |
Considerada a centralidade política da mídia privada comercial e o fato de que o Estado brasileiro constitui-se em um de seus principais financiadores, o que está em jogo é a própria democracia na qual vivemos. Não seria essa uma razão suficiente para a Secom interpretar constitucionalmente os seus critérios técnicos?
Por Venício Lima, (*) Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa.
“É necessário explicitar, quantas vezes forem necessárias, os critérios técnicos de mídia da SECOM. Se a publicidade de governo tem como objetivo primordial fazer chegar sua mensagem ao maior número possível de brasileiros e de brasileiras, a audiência de cada veículo tem que ser o balizador de negociação e de distribuição de investimentos. A programação de recursos deve ser proporcional ao tamanho e ao perfil da audiência de cada veículo” [cf. “Transparência e a desconcentração na publicidade do governo federal“].
A epígrafe acima foi escrita pelo servidor público que ocupa o cargo de Secretario Executivo da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM-PR), em artigo publicado recentemente neste Observatório (16/4/2013), e se refere “às programações publicitárias do governo federal – administrações direta e indireta, incluídas as empresas estatais”. [Neste artigo vamos desconsiderar as empresas estatais que competem no mercado de bens e serviços com as empresas privadas comerciais.]
Substituídas – na epígrafe – as palavras “SECOM” e “governo”, ela poderia ter sido assinada por qualquer diretor de marketing de uma empresa privada, produtora de bens de consumo em grande escala, por exemplo, “sandálias de dedo”.
Os critérios técnicos de “negociação e de distribuição de investimentos” oficiais de publicidade são iguais àqueles utilizados pelas empresas privadas comerciais que atuam no mercado de bens e serviços? A publicidade institucional de governo e a publicidade de empresas que buscam lucro no mercado têm os mesmos objetivos e obedecem aos mesmos critérios?
O que diz a Constituição?
O artigo 1º da Constituição de 1988 reza que um dos fundamentos da democracia brasileira é o pluralismo político (inciso V) e, logo em seguida, o artigo 5º garante que é livre a manifestação do pensamento (inciso IV). Essa garantia é confirmada no caput do artigo 220, que impede a existência de qualquer restrição à manifestação do pensamento, à expressão e à informação.
Por outro lado, o inciso I, do artigo 2º do Decreto nº 6.555/2008 que “dispõe sobre as ações de comunicação do Poder Executivo Federal” determina que “no desenvolvimento e na execução das ações de comunicação previstas neste Decreto, serão observadas as seguintes diretrizes, de acordo com as características de cada ação: afirmação dos valores e princípios da Constituição”.
Não seria, portanto, responsabilidade primeira da negociação e distribuição de qualquer investimento oficial – inclusive, por óbvio, aqueles de publicidade – proteger e garantir o pluralismo político e a liberdade de expressão (de todos)?
Se passarmos dos fundamentos políticos para os econômicos, constata-se que critério técnico “a programação de recursos deve ser proporcional ao tamanho e ao perfil da audiência de cada veículo” desconsidera também os princípios gerais da atividade econômica definidos no “Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira” da Constituição.
Na verdade, contrariam-se os incisos IV (livre concorrência), VII (redução das desigualdades regionais e sociais) e IX (tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte) do artigo 170, e o parágrafo 4º (repressão ao abuso de poder econômico, com vistas à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros) do artigo 173.
Como justificar, então, que os investimentos oficiais de publicidade possam adotar um critério técnico que conduza à homogeneização do discurso político e sustente o controle histórico da liberdade de expressão por oligopólios de mídia?
Quantidade x qualidade
Para além das razões constitucionais, um “planejador de mídia” poderia ainda argumentar que a utilização exclusiva dos critérios “tamanho e perfil da audiência de cada veículo”, exclui a programação chamada “qualitativa”.
O exemplo clássico continua sendo a centenária revista inglesa The Economist que, apesar de ter circulação relativamente pequena (1,4 milhões de exemplares, 4/5 deles fora do Reino Unido, sendo que metade só nos Estados Unidos), permanece como um dos veículos mais influentes junto às elites dominantes de todos (ou quase todos) os países do Ocidente.
Generalização dos critérios técnicos da SECOM-PR
A lógica dos critérios técnicos da SECOM-PR está sendo também adotada para a distribuição de recursos de publicidade oficial por governos estaduais, prefeituras, além do Judiciário e do Legislativo. Em pelo menos uma unidade da federação, iniciativa parlamentar pretende alterar esses “critérios técnicos”.
Em junho de 2012, foi apresentado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul o Projeto de Lei 159/2012, que institui a Política Estadual de Incentivo às Mídias Locais e Regionais, de autoria do deputado estadual Aldacir Oliboni (ver íntegra abaixo). O PL prevê que o estado destine pelo menos 10% dos recursos de publicidade oficial (1) a periódicos, jornais e revistas impressas, com tiragem entre 2.000 (dois mil) e 20.000 (vinte mil) exemplares, editados sob a responsabilidade de empresário individual, micro e pequenas empresas; e (2) a veículos de radiodifusão local, devidamente habilitados nos termos da legislação brasileira.
Na Justificativa do PL, o deputado Aldacir Oliboni argumenta:
“A distribuição desconcentrada dos recursos de publicidade oficial, os quais, historicamente, acabam destinados majoritariamente para grandes empresas, é uma medida substantiva para o desenvolvimento de uma comunicação local voltada aos reais interesses dessas comunidades. (...) Possibilitar que estes pequenos veículos se viabilizem, contribui decisivamente para a construção de uma comunicação cidadã e para a liberdade de opinião e expressão de comunidades e segmentos que, na maioria das vezes, não tem oportunidade de veiculá-las a partir dos grandes meios de comunicação. (...) Esse fomento servirá também para maior isenção no fluxo de informações fortalecendo a própria democracia, visto que possibilitará a desconcentração das notícias e versões noticiosas divulgadas, as quais, nos dias de hoje, estão centralizadas nos grandes conglomerados de comunicação existentes no Estado e no País”[ver aqui].
Da mesma forma, a Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom) tem reivindicado que 30% dos recursos publicitários oficiais sejam destinados às pequenas empresas de mídia.
Em artigo publicado neste Observatório (“Por que o governo deve apoiar a mídia alternativa“], defendi esta posição citando, inclusive, o precedente de estímulos já existentes para a agricultura familiar (Lei nº 11.947/2009) e para a atividade audiovisual (Lei 11.437/2009).
Mídia e democracia
Apesar do Decreto nº 6.555/2008 [“dispõe sobre as ações de comunicação do Poder Executivo Federal”] e de sua regulamentação pela Instrução Normativa SECOM-PR nº 2/2009 [“disciplina as ações de publicidade dos órgãos e entidades integrantes do Poder Executivo Federal”]existirem desde o governo do presidente Lula – e apesar da negativa do atual Secretario Executivo da SECOM-PR – as pequenas empresas de comunicação questionam a interpretação dos critérios técnicos para distribuição dos recursos oficiais de publicidade que vem sendo praticada nos últimos dois anos (ver “Secom concentra verbas nos grandes veículos“).
De qualquer maneira, nem o Decreto nem a Norma trazem (nem poderiam trazer) nenhuma restrição à distribuição dos investimentos para a chamada mídia alternativa (empresas de audiência qualificada e que não podem concorrer, em igualdade de condições – porque iguais não são – com portais como o UOL ou com conglomerados empresariais como as Organizações Globo).
Aliás, a convergência de mídias provocada pela digitalização tem levado governos de outras democracias a buscar formas de financiar especificamente a mídia digital. É o que ocorre, por exemplo, na França. Após dois meses de negociações, o governo de François Hollande chegou a um acordo, no início de fevereiro, para que o Google estabeleça um fundo de 60 milhões de euros para ajudar na transição para o digital. O fundo vai “impulsionar a inovação na área de mídia digital”. Os projetos que forem submetidos a financiamento serão avaliados segundo critérios de inovação e viabilidade de negócio e o fundo será gerido por uma administração composta por representantes do Google, da imprensa francesa e membros independentes (ver aqui).
Entre nós, trata-se da observância (ou não) de fundamentos e princípios constitucionais expressos nas ideias liberais de pluralidade e diversidade. Se fossem cumpridos, o critério técnico da SECOM-PR deveria ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker) e a garantia de que mais vozes fossem ouvidas e participem ativamente do debate público.
Repito o escrito em outra ocasião. Tem razão a Altercom quando afirma que há justiça em tratar os desiguais de forma desigual e há de se aplicar, nas comunicações, práticas que já vêm sendo adotadas com sucesso em outros setores.
Considerada a centralidade política da mídia privada comercial e o fato de que o Estado brasileiro constitui-se em um de seus principais financiadores (se não, o principal), o que está em jogo é a própria democracia na qual vivemos.
Não seria essa uma razão suficiente para a SECOM-PR interpretar constitucionalmente os seus critérios técnicos?
Projeto de Lei nº 159 /2012
[Disponível aqui.]
Institui a Política Estadual de Incentivo às Mídias Locais e Regionais no Estado do Rio Grande do Sul e dá outras providências.
Art. 1º – Fica instituída a Política Estadual de Incentivo às Mídias Locais Regionais no Estado do Rio Grande do Sul, pela qual, observados os preceitos legais sobre a matéria, os Poderes do Estado poderão destinar percentual não inferior a 10% (dez por cento) da sua receita anual de publicidade, prevista no Orçamento para a divulgação de obras, anúncios, editais, programas, serviços e campanhas em gerais, aos veículos mencionados nesta Lei.
Art. 2º – Para os efeitos desta Lei, considera-se Mídia Regional e Local os seguintes veículos:
I – periódicos, jornais e revistas impressas, com tiragem entre 2.000 (dois mil) e 20.000 (vinte mil) exemplares editados sob responsabilidade de empresário individual, micro e pequenas empresas;
II – veículos de radiodifusão local, devidamente habilitados em conformidade com a legislação brasileira;
§ 1º – As mídias apontadas devem ter reconhecimento regional e local, caracterizando-se por serem prioritariamente dirigidas às regiões do Estado, ou a locais ou segmentos específicos da sociedade gaúcha.
§ 2º – A critério dos Poderes do Estado, poderá ser exigido que a tiragem a que se refere o item I seja atestado por instituto de pesquisa de notória reputação.
Art. 3º – Para efeito de habilitação aos recursos públicos, as mídias regionais interessadas deverão observar os seguintes critérios:
I – ter, no mínimo, dois anos de funcionamento sem interrupção de suas atividades;
II – ter em seu quadro de pessoal jornalista responsável;
III – não manter vínculos que a subordinem ao comando de outras empresas jornalísticas e de radiodifusão, escolas, igrejas, partidos políticos, sindicatos, associações de classe, associações representativas de setores industriais ou de serviços;
IV – não possuir proprietário, sócio ou gerente que exerça estas mesmas funções em outra mídia beneficiária;
V – não possuir proprietário, sócio ou gerente, ou parentes até o segundo grau destes, que ocupem cargos públicos eletivos ou de confiança nos âmbitos Municipal, Estadual ou Federal;
VI – veicular conteúdo eminentemente editorial, sendo vedado o benefício a mídias destinadas exclusivamente a conteúdos publicitários.
Art. 4º – O Estado poderá regulamentar a presente Lei.
Art. 5º – Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.
Sala das Sessões, 28 de junho de 2012.
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