Por Marcelo Zero
Chávez não era Chávez. A foto exibida no El País,
jornal conservador espanhol, tinha sido retirada de um vídeo médico de 2008,
que mostrava um anônimo homem em coma.
Pesquisa perfunctória teria revelado o erro grotesco e
primário. No entanto, o El País, uma espécie de sucursal ibérica do
antichavismo, resolveu arriscar para ver se “colava”. Não colou. Um internauta
percebeu logo o erro e o jornal teve de retirar a foto e pedir desculpas. Tirou
a foto e colocou em si mesmo uma grande e vergonhosa “barriga”.
Entretanto, esse episódio, não é, na realidade, um
fato isolado, um simples erro ocasional. Ao contrário, ele é emblemático de um
tipo de jornalismo que se tornou bastante comum, especialmente na América do
Sul.
Com efeito, na Venezuela, na Argentina, no Equador, no
Brasil e em outros países do subcontinente pratica-se, com inquietante
desenvoltura, um tipo de jornalismo que costuma distorcer ou falsear a
realidade.
Os retratos que são pintados diuturnamente pela mídia
tradicional sobre a situação atual desses países mostram um quadro de caos,
desagregação social e política e falta de rumo que não encontra correspondência
com a realidade objetiva. Parecem “fotos” grosseiramente retocadas por um photoshop concebido para enfear, ou
mesmo simples falsificações, como a imagem do suposto Chávez hospitalizado.
No Brasil, por exemplo, há uma década que boa parte da
nossa mídia tradicional e oligopolizada divulga as “fotos” e os “retratos” das
supostas mazelas dos governos do PT, apresentados, quase que invariavelmente,
como absolutamente incompetentes, irremediavelmente corruptos, solertemente
antidemocráticos e francamente desastrosos. Pelo o que se divulga em boa parte
dessa mídia, o País vive um processo acelerado de decadência desde 2003, quando
o governo liderado pelo PT substituiu o “competente”, “limpo” e “democrático”
governo de tintas paleoliberais, que havia colocado a nação no rumo “correto”
da “modernidade”.
Bem, seria fastidioso enumerar aqui os claros êxitos
dos recentes governos brasileiros. Basta fazer análise objetiva dos principais
indicadores socioeconômicos para se chegar à inevitável conclusão de que o
Brasil, nos últimos dez anos, mudou substancialmente para melhor. Estudo
mundial do Boston Consulting Goup,
divulgado há poucos meses e solenemente ignorado, coloca o Brasil como o país
que mais se destacou na qualidade recente de seu desenvolvimento.
Assim, se alguém quiser entender o que aconteceu no
Brasil na última década, não entrará respostas fidedignas na imprensa
conservadora. Terá de recorrer a blogs
e sites alternativos e a fontes
estrangeiras, ou fazer suas próprias pesquisas.
A imagem do Brasil recente construída por parte
expressiva da grande mídia tradicional está tão longe da realidade quanto a
foto do homem hospitalizado dista do autêntico Chávez. Na tentativa incansável
de “furar” os governos progressistas recentes, produz-se uma pletora de
“barrigas”, numa espécie de vale-tudo midiático. Trata-se, portanto, de uma
mídia-barriga, que fábrica notícias distorcidas, enviesadas, exageradas e até
mesmo falsas, de forma sistemática. Uma mídia que convive melhor com figuras do
submundo do que com a verdade.
Esse distanciamento da realidade, que beira a
esquizofrenia, é muito preocupante. Porém, não é o único. Há também o claro
descolamento entre a opinião publicada e a opinião pública. A primeira dedica
ódio profundo ao PT e seus governos. Já a segunda consagra Lula e Dilma com
recordes de popularidade. Por isso, a mídia tradicional passou, nos últimos
anos, a questionar a legitimidade do voto popular. Com a candura que lhe é
peculiar, ressuscitou a “tese Pelé”, construída na ditadura, segundo a qual o
“povo não sabe votar”. Aqueles que votam com a situação o fazem por que são
manipulados e desinformados, escravos do Bolsa Família que não têm o hábito de
ler Veja e outros modernos bastões do Iluminismo. É um voto que, no fundo,
segundo essa concepção, não conta, ou não deveria contar.
Isso nos leva ao terceiro e mais preocupante
distanciamento ou descolamento. O distanciamento entre parte da mídia
conservadora e a democracia. Em tempos recentes, segmentos da nossa mídia
tradicional, honrando uma notável tradição, não se acanharam em aplaudir e
defender golpes militares ou “brancos” contra governos progressistas da América
Latina, como aconteceu na Venezuela, em Honduras e no Paraguai. Autoridades
eleitas e reeleitas, em pleitos livres e lisos, são tratadas caricatamente como
“ditadores”, “caudilhos” e “populistas”, gentalha que ameaça a “democracia”.
Provavelmente uma “democracia” sem povo e sem voto, que assegura a
independência das instituições, desde que elas sejam conservadoras, e a
alternância de poder, desde que entre forças políticas da direita, como no
pacto político de Punto Fijo, que
dominava, com o aplauso da mídia, a Venezuela pré-Chávez.
Obviamente, nada disso é novidade. A grande mídia do
Brasil e de outros países do subcontinente sempre foi muito conservadora. No
passado, apoiou ditaduras e esmerou-se na crítica a partidos de esquerda e a
movimentos sindicais e sociais a eles associados.
A novidade está em que parte dos países da América do
Sul é governada hoje por forças políticas que romperam, até certo ponto, em
maior ou menor grau, com a agenda neoliberal que levou os partidos de direita e
centro-direita da região à ruína política. Surgiram ou chegaram ao poder novas
forças políticas. De repente, essa mídia, acostumada com o oligopólio político de
uma pequena elite, secundada pelos setores conservadores da classe média, viu
seu poder de influência decrescer consideravelmente. Nessa nova conjuntura,
revela a sua verdadeira e feroz face: a de um partido de oposição que não mede
esforços para recuperar a sua antiga hegemonia e que não tem pudor em atropelar
a verdade e as normas básicas do bom jornalismo, colocando em risco a
democracia que diz tanto defender.
Entretanto, essa mídia ainda detém firme monopólio da
produção e difusão da informação. A internet, por certo, cria circuitos
alternativos de debate democrático. Porém, é ilusão pensar que ela, por si só,
é capaz de quebrar o monopólio da informação. Na realidade, esse monopólio é
também reproduzido no mundo on-line.
A informação destoante é francamente minoritária e escassa.
O Brasil precisa de uma mídia mais aberta,
profissional, democrática e, sobretudo, plural, como recomenda, aliás, o
relatório intitulado “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia
europeia”, elaborado recentemente, no âmbito da União Europeia. E seu governo
precisa, sim, de críticas consistentes e fundamentadas, e não da atual
cachoeira de panfletos histéricos, denúncias vazias e textos mal-escritos.
Isso demandaria, obviamente, que se iniciasse um
debate amplo, franco e livre sobre a extrema concentração dos meios de
informação no país. Mas esse é um tema
tabu, interditado pela mídia conservadora, que alega que tal debate representa
ameaça à liberdade de expressão e à democracia.
Uma alegação tão falsa quanto a foto do Chávez no El
País.
[AS OPINIÕES AQUI EXPRESSAS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES]
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