Após o anúncio feito pelo presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, vereador Walter Cavalcante (PMDB), no dia 1º de janeiro, de que teria como uma das prioridades do seu mandato a transmissão de missas e cultos nos canais legislativos – TV e Rádio Fortaleza – o debate sobre a laicidade do Estado, a programação e a gestão das emissoras públicas vem ganhando espaço na mídia, na Câmara e em grupos da sociedade civil. Na última segunda-feira (21), dia nacional de combate à intolerância religiosa, comunicadores populares, entidades da sociedade civil, movimentos sociais e parlamentares se reuniram com o objetivo de abrir um espaço de diálogo para contrapor a a proposta do presidente da Câmara.
Segundo Aby Rodrigues, do Instituto Negra do Ceará (Inegra), a proposta representa um movimento de avanço de práticas que fortalecem o machismo, o patriarcalismo e o racismo. “Lembramos que o mesmo vereador também é autor da proposta de inclusão da Marcha pela Vida Contra o Aborto no calendário oficial do município, um ataque direto à luta pela legalização e descriminalização, quando todas/os sabemos que são as mulheres negras pobres que mais abortam nesse país e consequentemente são as que mais morrem pela falta de assistência médica. Além disso, vale destacar que muitas de nós são praticantes das religiões de matriz africana, crença que já sofre bastante discriminação em uma sociedade majoritariamente cristã e racista”, afirma.
Laryssa Sampaio, estudante de Comunicação Social e militante da Marcha Mundial de Mulheres, reitera a preocupação com o avanço do conservadorismo e defende que a luta das mulheres “também passa pela luta por um outro modelo de comunicação”. Segundo a estudante, algumas propostas de ação foram discutidas na reunião realizada na última segunda-feira. “Conseguimos dar encaminhamentos que buscam o diálogo com a sociedade, que travam a luta política por um modelo de comunicação democrático, laico e popular e ainda a luta no âmbito judicial”, ressalta.
Constituição
O Artigo 19 da Constituição Federal Brasileira proíbe o Estado de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". Em matéria publicada no jornal O Povo em 15 de janeiro deste ano, o vereador Elpídio Nogueira (PSB) – encarregado de levar adiante a proposta de transmissão das missas e cultos nos canais legislativos municipais – afirmou que o estado laico deve respeitar “as maiorias” e que não se trata de “colocar a religiosidade oficialmente, mas retratar o aspecto religioso da cidade”.
Em 2010, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) passou por discussão similar que resultou na determinação de seu Conselho Curador de retirar os programas religiosos veiculados pela TV Brasil e pelas rádios da empresa de suas grades de programação, a partir da avaliação que a emissora pública não poderia conceder espaços para o proselitismo de religiões particulares. Em 2012, o Conselho Curador determinou a criação de uma faixa de conteúdo religioso orientada por um conselho editorial específico.
Manifestação
As entidades e movimentos presentes na reunião lançaram hoje uma nota oficial (leia abaixo) se contrapondo à medida dos parlamentares e anunciaram que irão recorrer ao Ministério Público questionando o respeito ao princípio da laicidade do estado. Segundo Raquel Dantas, integrante do Intervozes, o objetivo central do grupo é garantir uma discussão democrática e participativa sobre a programação dos canais legislativos. “O caso da veiculação de missas e cultos é um caso específico de conteúdo, mas a discussão sobre o que é veiculado deve ser geral e acessível a qualquer cidadão. Um Conselho com participação popular seria um caminho para essa abertura, como vemos nos avanços tomados pela EBC através do Conselho Curador num caso semelhante ao da TV Câmara”, defende.
A próxima reunião aberta do grupo acontecerá no Conselho Regional de Serviço Social – CRESS, no dia 30/01 às 18h. O CRESS está localizado na Rua Waldery Uchoa, 90, no bairro Benfica.
Confira a nota publicada pelas entidades:
TV e rádio Fortaleza: comunicação pública deve ser laica e democrática,
com pluralidade e diversidade
com pluralidade e diversidade
Nós, comunicadores populares, movimentos sociais e religiosos abaixo-assinados, questionamos a transmissão de rituais religiosos na TV Fortaleza, proposta pelo presidente da Câmara Municipal, vereador Walter Cavalcante (PMDB), e assumida pelo vereador Elpídio Nogueira (PSB).
Defendemos a divulgação da fé ou de quaisquer crenças, que pode e deve ser realizada, sem qualquer discriminação, nos programas das emissoras legislativas. No entanto, somos contrários (as) ao uso de meios de comunicação públicos para fins de proselitismo religioso, o que em nada contribui para um ambiente de respeito à diversidade e à pluralidade de crenças religiosas, valores ético-morais e visões políticas que caracterizam a nossa sociedade. O privilégio concedido a segmentos, ao contrário, retira do Estado o seu caráter laico e fortalece uma cultura de intolerância.
Nosso argumento é para que se cumpra a Constituição Federal, mais precisamente explicitada no Artigo 19: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Acreditamos que a proposta, divulgada em matéria feita pelo jornal O Povo no dia 15 de janeiro deste ano (acessível em: http://migre./cVcoo), viola a Constituição, já que não se trata de uma corriqueira divulgação da diversidade religiosa e cultural de nossa cidade, mas de uma promoção seletiva de confissões cristãs que tende a contemplar apenas grupos restritos. Por isso, solicitamos a imediata anulação da medida pela Câmara Municipal de Fortaleza.
Requeremos, ainda, em cumprimentos dos pressupostos democráticos e republicanos que devem basilar a comunicação pública, que a Casa Legislativa abra espaço para discutir com a sociedade civil a programação da emissora pública legislativa à exemplo do que vem ocorrendo na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que agrega televisões, rádios e agências de notícias do Governo Federal. Em 2010, a EBC passou por um processo similar, cujos debates e consultas resultaram na determinação do Conselho Curador, com ampla participação da sociedade civil, de retirar os programas religiosos que compunham a programação da TV Brasil e das rádios da empresa.
A deliberação do conselho ratificou um parecer elaborado no mesmo ano pela Câmara de Educação, Cultura, Ciência e Meio Ambiente do órgão, que defendia ser “impróprio que os veículos públicos de difusão concedam espaços para o proselitismo de religiões particulares, como acontece atualmente com os programas que vão ao ar na TV Brasil aos sábados e domingos, dedicados à difusão de rituais ou de proselitismo que favorecem a religião católica e a segmentos de outras religiões cristãs”. Neste caso, os programas foram retirados do ar, e, em julho de 2012, a EBC criou a Faixa da Diversidade Religiosa, que vai criar um programa, com uma hora de duração e de cunho jornalístico, focado na reflexão sobre as diversas crenças e outro, com meia hora, diretamente voltado às mensagens dos distintos grupos e expressões religiosos.
Nesse sentido, ressaltamos a necessidade de que seja realizado um amplo debate que envolva o poder legislativo municipal e a sociedade civil organizada para construir uma proposta de programação para as emissoras públicas (TV e rádio Fortaleza). A nova grade deve contemplar a diversidade e a pluralidade de ideais e crenças e que cumpra, em última instância, o objetivo central de informar a sociedade sobre as ações da Câmara de Fortaleza.
Assinam esta nota:
Consulta Popular
Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social
Fábrica de Imagens
Fórum Cearense de Mulheres
INEGRA
Intervozes
Juventude Negra Kalunga
Mandato Ecos da Cidade
Mandato Ronivaldo Maia
Marcha Mundial das Mulheres
Nigéria Comunicação e Audiovisual
Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares/CE
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária –SAJU
TERRAMAR
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