A recente Conferência Nacional de Comunicação Social (Confecom), realizada em Brasília, foi um importante marco para a redefinição do estatuto da imprensa e seus profissionais no Brasil. Lamentavelmente, a grande mídia, através de seus lobbies, manifestou seu desagrado com o evento e não compareceu.
Toda a nossa legislação de concessões de canais de rádio e televisão ainda remonta à década de 40, exigindo obviamente reavaliação e mudanças. O universo da comunicação, com a emergência da televisão, modificou-se muito desde lá, a própria sociedade brasileira se transformou com o processo de industrialização, urbanização e mobilização. A democracia interna do país se aprofundou com o direito irrestrito de organização política, universalização do voto e presença de movimentos organizados.
Tudo isso está a exigir, claro, uma mudança no perfil de uma imprensa ainda controlada por grandes grupos econômicos, que abocanham a maior parte das verbas publicitárias e que se transformam em inevitáveis referências à formação de opinião e tomada de decisões pelo poder público. O que está em jogo, vale repetir, é a liberdade de expressão, um direito inalienável da cidadania desde a Revolução Francesa, e isso não se confunde com o direito ao verdadeiro monopólio da informação levado a efeito pelos grupos que controlam a grande mídia.
Paulo Henrique Amorim, respeitado jornalista com vasta experiência, até diz que essa imprensa se transformou em partido político no país, tal o poder que exerce sobre a sociedade e o Estado. O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Um filme clássico de Orson Welles – Cidadão Kane – retrata a mesma coisa nos Estados Unidos. E, recentemente, a presidente I. Kirchner, da Argentina, para não falar no controvertido Hugo Chávez, também enfrentou a questão conseguindo aprovar uma nova legislação para a imprensa naquele país. Nós, aqui no Brasil, mais cedo ou mais tarde teremos que enfrentar o problema, custe o que custar... E para isso a Conferência trouxe importantes contribuições.
Mas quero me deter numa das resoluções da Conferência: a criação do Conselho Profissional dos Jornalistas. O assunto vem sendo discutido há tempo entre a categoria dos jornalistas e chegou a ganhar o beneplácito do primeiro governo Lula, que submeteu, sem êxito, a criação do referido conselho ao Congresso Nacional. Uma campanha bem urdida pela grande mídia levou à idéia de que tal conselho feriria a liberdade de expressão. Resultado: o tema morreu, ressuscitando, agora, na Conferência.
Também discordo da criação do Conselho de Jornalistas, mas por outras razões.
Os conselhos profissionais, no Brasil, geralmente acompanharam a regulamentação do exercício profissional das categorias a que se referem, e tomaram como modelo o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mas qual o objetivo desses conselhos? Os conselhos deveriam velar pela fiscalização do exercício profissional constituindo-se como órgãos públicos – autarquias – vinculadas ao Ministério do Trabalho.
Todos os profissionais qualificados por instituição credenciada pelo governo ficaram compulsoriamente obrigados a fazer seus respectivos registros nos referidos conselhos, os quais aprovaram, também, um código de ética para orientar os procedimentos relativos à deontologia profissional. Criaram-se o Conselho de Medicina (CRM), o Conselho de Engenharia e Arquitetura (CREA), o de Economia (CFE), o de Farmácia (CRF), e assim por diante. Tornou-se um rito: regulamentar a profissão e criar o respectivo conselho de fiscalização do exercício profissional. A única exceção que eu conheça a tal regra foi o dos Sociólogos, que também tentaram criá-lo, mas acabaram desistindo diante dos argumentos que a douta categoria, através de notórias referências, apresentou-lhe.
Mas os jornalistas nunca desistiram do "seu Conselho". Acham-se inferiorizados com relação às demais categorias profissionais regulamentadas, por não disporem de um mecanismo comum às demais. Ledo engano. Os tais conselhos, dos quais fui conselheiro federal e presidente regional, como economista, constituem-se num grande equívoco político.
Os conselhos, em primeiro lugar, ocupam, indevidamente, o lugar dos sindicatos e associações , como "órgãos de classe", e o fazem com o peso do número de registrados – compulsórios – em seus quadros.
Compare-se, em qualquer categoria profissional, o número de "filiados"
aos sindicatos com o número, várias vezes maior, de "registrados" nos conselhos e se entenderá o que estou dizendo. Com base nessa falsa "representação de classe", os conselhos acabam se impondo como mecanismos de representação e falando por suas respectivas categorias, com a vantagem de contar com polpudas rendas derivadas da cobrança de taxas anuais não só dos profissionais registrados, mas também das empresas em que se abrigam.
Isso é um absurdo, pois os conselho são órgãos públicos, apesar de administrados pelo voto dos seus membros, e não por indicação da autoridade superior. Os conselhos são autarquias, vinculadas intrinsecamente ao Estado. Não podem cumprir, como tal, a função de representação de classe, esta privativa dos sindicatos, dentro do princípio de pluralidade que rege o movimento. Cada um se filia ao sindicato se assim o desejar, e cada sindicato se filia à central sindical com a qual se sintonize politicamente. Isso é liberdade de organização, que fortalece a sociedade civil. Há, ainda, um resquício da unicidade sindical no modelo brasileiro, mas não vem ao caso. A preocupação, aqui, é mostrar que os conselhos vazam os sindicatos e se valem de sua prepotência como órgãos públicos para fazê-lo.
Em segundo lugar, há a questão da fiscalização do exercício profissional e da aplicação do código de ética. O modelo dos conselhos é um modelo obsoleto. Ele pretende, ao estilo das velhas corporações de ofício medievais, um controle dos profissionais pelos profissionais. Ora, isso não faz nenhum sentido no mundo moderno. A fiscalização do exercício profissional é uma questão de Estado – e até aí os conselhos estão certos, pois são partes do Estado –, pois cabe ao Estado garantir à cidadania um acesso seguro aos serviços profissionais que demandam. Espera-se, ainda, que o Estado se abra à sociedade civil nos seus esforços de melhor realizar suas funções.
Aí também os conselhos poderiam até se constituir em avanço no processo de democratização do Estado, pois traz os profissionais respectivos para o concurso das funções de Estado. Mas o Estado deve abrir-se à sociedade civil com critérios de representatividade relativo ao tipo de serviço que presta ou controla. Normalmente, em conselhos como os municipais, nas esferas escolar e de proteção à criança, nos estaduais, de promoção do desenvolvimento, ou mesmo federais, há uma forte presença do próprio Estado, através de seus funcionários, supostamente qualificados como mediadores entre a Lei e o Cidadão, e uma presença proporcional da sociedade civil envolvida no processo – empresas, profissionais da área, consumidores, sindicatos, órgãos de notório saber etc. Não poderá jamais o Estado, nem abrir mão de sua presença qualificada, nem de restringir a abertura a um só interessado.
Os conselhos, tal como estão desenhados, ficam entregues a si mesmos e acabam, por esse vício de origem, incapacitados para fazer o que
deveriam: fiscalizar, com isenção pública, os serviços profissionais.
Acabam se transformando em corporações de ofício e não como órgãos modernos de controle sobre serviços importantes prestados à sociedade.
Tanto que dificilmente punem seus pares por desvios de ética profissional. Onde está o Conselho de Medicina de São Paulo no caso Abdulmassih? Onde esteve o CREA, no caso de vários desabamentos, como o dos prédios que desabaram no Rio?
Finalmente, há essa tradição de copiar o modelo da OAB, que serviu de modelo aos conselhos profissionais. Mas a profissão do advogado tem peculiaridades que não se distribuem às demais. Ele trabalha diretamente junto ao Estado, tem função, sim, de representação de seus constituintes junto aos tribunais. A OAB não deveria ser modelo para um moderno e eficiente serviço de fiscalização do exercício profissional. É hora de se iniciar uma reflexão sobre todo esse processo e não, simplesmente, ir multiplicando órgãos que pouco contribuem ao que tanto desejamos: à construção e aprofundamento da democracia entre nós.
Bem-vinda, pois, a Conferência de Comunicação com sua presença no processo de mudança do Estatuto da Imprensa no Brasil, mas, com o devido respeito aos que aprovaram a criação de um Conselho de Jornalistas, isso é um lamentável e recorrente equívoco. Os jornalistas devem lutar pelo fortalecimento de seus sindicatos e pela multiplicação de instituições de garantia de qualidade vinculada a seus órgãos ou serviços, e não sentirem-se inferiorizados por não terem um conselho. Isso, aliás, é uma dádiva que ainda mantém seus sindicatos com algum poder.
Paulo Timm, novo colunista de ViaPolítica, é economista, Pós-Graduado pela Escolatina, Universidade de Chile , ex-presidente do Conselho Regional de Economia, e professor da Universidade de Brasília (UnB).
As opiniões aqui postadas são de responsabilidade de seus autores
Nenhum comentário:
Postar um comentário