Por TT Catalão, publicado originalmente na revista MeiaUm
A luz queima as folhas daquela edição histórica. O papel do
jornalista, hoje, não é só papel. Novos suportes que pedem outras narrativas
que utilizam diferentes linguagens. Mas a base é uma só (como cantou Tom a
letra de Newton Mendonça): crédito se refaz com simples reposição de grana, já
a credibilidade exige cultivo diário e coerência permanente. Para contar a
história do jornalismo em e de Brasília ainda não surgiu uma obra com a
disposição de mexer nas relações do e com os poderes.
A promiscuidade entre fonte e jornalista sempre resulta no
plantio da manchete (que até não deixa de ser verdadeira) tratada, desidratada,
embalada, para atingir alvos específicos sem ferir o pacto sombrio entre quem
ofereceu o furo e quem o trabalha nos devidos fins. Brasília que eternizou a
frase “não existe almoço grátis” e “aqui, no poder, não há relação entre
pessoas, mas entre cargos e cacifes”. Isto gerou uma tensão contínua entre quem
tenta ser independente e o quanto se perde o emprego pela tentativa. Honrada,
sempre.
A “parada de fracassos” dos movimentos autônomos da Capital em
busca de uma imprensa, realmente digna da sua missão já tem mais história que
reflexão produzida sobre esta trajetória. Não precisa ser uma disciplina na
faculdade. Nem virar tese robusta para uma enciclopédia. Bastaria, talvez, um
pouquinho de senso provocador para tentar alinhar os períodos da imprensa,
dita, brasiliense ou feita no território da Capital para descobrirmos importantes
pistas na própria historia do jornalismo nacional. É um local complexo este
aqui. Coberturas nacionais e locais tendem a distinguir e dividir profissionais
como se um fosso (principalmente salarial) e demitasse a competência com base
na projeção externa ou interna.
Há um óbvio trânsito diferente na estratégia, formação e
desempenho de quem atua para dentro ou para fora, mas há um só organismo
permeando a mobilidade e o tônus desse profissional: a própria cidade. E no
fundo essencial sempre haverá um só jornalismo. Fora desse contexto não podemos
nem catalogar o “mau jornalismo”, pois se ocorre a perda da essência no sentido
de um serviço comprometido com a busca da verdade, nem jornalismo é, vira um
negócio ou uma jogatina como outra qualquer.
Creio que a última tentativa, mais organizada, de tocar na tal
complexidade foi com a publicação “Jornalismo de Brasília: impressões e
vivências”, coordenada pelo Sindicato de Jornalistas Profissionais em 1993. Uma
capinha horrível (marrom para provocar a imprensa da mesma cor), mas de uma
pulsação, digamos, romântica que é a marca dos anos mais febris da cidade na
política e na cultura. Publicados como ensaios, sem nenhum rigor acadêmico, o
trabalho revisto hoje dá pistas (oferece um pré-roteiro) da tal complexidade
não só de um jornalismo feito a partir de uma Brasília (e suas pautas,
geralmente clichês do que se possa entender como “coisa de Brasília”) e um
jornalismo feito com a linguagem de quem assumiu a mestiçagem do conviver com
as muitas Brasílias. E aí não pode faltar o choque cultural do nosso caldeirão
antropófago.
Confesso que fui remetido ao tema, não por nostalgia ou
esclerose emotiva, mas pela evidência simples de que não estamos pensando no
que fazemos. E assim repetimos, como farsa, o que não deveríamos. Perdemos a
autocrítica e alimentamos fantasminhas nada camaradas para criarmos muros e
guetos entre gerações como se estivéssemos em trincheiras opostas ou que a
existência de um talento fosse ameaça ao nascimento de outro. Tudo isso foi
provocado durante a cerimônia de sepultamento do jornalista Fernando Lemos e
ver que havia uma trajetória muito original entre os protagonistas desse
processo, idêntico ao processo da construção física da cidade (pelo brutal
trabalho do candango): enquanto se faz, a gente se constrói. Talvez por isso
que a cidadania só se dá a quem se doa.
Fernando, entre todas as contradições naturais e inerentes do
humano, provocou alguns momentos com grande chance de servir para marcas
distintas do jornalismo brasiliense em diversos períodos. Principalmente por
estar profundamente envolvido nos caminhos do Correio Braziliense que não há
como excluir de um estudo sobre o tema sem penetrar na própria historia do
jornal. Acordei para o livro do Sindicato ao perceber que os temas foram ambiciosos
(bem tratados até, pela velocidade pressionadora da reportagem) sem discriminar
o nacional do local. Em 1993 tínhamos uma diretoria com Chico Santana, Carlos
Magno, Fátima Xavier, Jacira Silva, Alexandre Marinho, Marizete Mundim entre
outros. A introdução é daquele que nos devolveu dignidade por ser raiz
praticante de tudo que escrevia: nosso Castelinho, Carlos Castelo Branco. A
revisão e formatação ficou com o Doyle e os temas esticaram o arco da
abrangência generosa pela ética, o oficial propriamente dito, formação
acadêmica,sucursais, jornais desaparecidos (memória), charges e humor,
fotojornalismo (grande marca do olhar que pensa), radiojornalismo,
telejornalismo, os alternativos (era o termo da época para os que desafiavam o
mercadão), o jornalismo sindical, o império dos releases na relação com o
poder, o pacotão (o germe panfletário de luta e prazer da chamada “catigoria”),
a historia e o papel proativo do Sindicato na construção das tais lutas
democráticas e o Jornal de Brasília e o Correio Braziliense pelo peso
institucional dessas duas empresas na cidade.
Evidente que as novas relações e a própria dinâmica da
história e seus reflexos no fazer jornalístico exigiria inúmeros focos para
continuar essa narrativa. Senti na pele (com imensa honra), por exemplo, dois
saltos estéticos e conceituais do Correio Braziliense que já provocariam um
capítulo (daí a reflexão que a morte de Fernando instigou): a fase Oliveira
Bastos - Fernando Lemos e a fase Noblat - Chiquinho Amaral. Exatamente pelo
viés da “desprezada” Cultura o jornalismo também foi trabalhado como linguagem
e estética. E ousadamente, ás vezes, criava fatores entre polêmicas e
acontecimentos para interferir na cidade e não apenas “cobri-la”.
Considerava-se, até como pejorativo, o ser do Caderno 2 como um jornalista de
amenidades e entretenimento eventual, “de segunda”. No entanto foi pela
reinvenção cultural que os dois saltos muito colaboraram no conjunto das
práticas, óbvio, sem abandonar as técnicas clássicas.
Nas atuais fronteiras movediças de redação, diagramação ou
design gráfico, midia impressa, eletrônica, comunitária, expressão individual
de blogs e a convergência de tantos suportes a historia do jornalismo feito em
Brasilia terá outra pauta e outros atores. Mas a base é uma só: nem tudo o que
está impresso é jornal, pode ser só tinta borrada de omissão; nem tudo que é
clean ou criativozinho é design, é preciso intercorrências concretas entre
forma e conteúdo; nem tudo que é messiânico e “puro” vai transformar a
sociedade se os discursos não estiverem emprenhados de atitudes comprometidas
na vida. Daí que poderíamos retomar a publicação de 1993 (sem louvação
imobilizadora do passado) e rever o quadro, agora. Porque um texto medíocre
sempre será terrível em papel paupérrimo ou em CD-Rom; uma imagem vazia sempre
não dirá nada, apenas enchendo de narcose o hiperespaço de ruído e cor, mesmo
em alta definição e assim vai...não existe mau jornalismo. Se não for bom, nem
jornalismo é. Boa viagem, Fernando.
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