Caros leitores e leitoras.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Em vigência ‘plena’ há um ano, Lei de Meios argentina ainda não é inteiramente aplicada

Por Aline Gatto Boueri, publicado originalmente no Opera Mundi.


Aprovada em 2009, lei foi questionada na Justiça pelo Grupo Clarín durante quatro anos; batalha entre empresa e governo pode ser reaberta.
Há pouco mais de meia década, o Congresso argentino aprovou a LSCA (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), que ficou conhecida como Lei de Meios. Durante quatro anos, quatro artigos da norma - os que tinham relação com a concentração da propriedade dos meios de comunicação - foram questionados judicialmente pelo Grupo Clarín. Em 29 de outubro de 2013, dois dias depois de eleições legislativas, a Corte Suprema decidiu que a lei deveria ser integralmente aplicada.
A partir daquela manhã, o governo já não poderia adiar os processos de adequação à norma dos grupos de comunicação concentrados, o que havia feito até então com o argumento de que o Grupo Clarín estaria em vantagem enquanto estivesse protegido do mesmo destino por uma medida cautelar. Entre apoiadores da LSCA, houve esperança de que, com o fim da judicialização, começasse uma aplicação efetiva de todos os outros artigos - o que ainda não aconteceu.
No entanto, após o anúncio, no último dia 8 de outubro, de que o Clarín deveria se desfazer compulsoriamente de licenças que excedessem o limite da lei (sob a justificativa de que os novos concessionários eram sócios em empresas no exterior), a disputa legal corre o risco de ser reaberta e pode adiar ainda mais a efetiva aplicação da lei.
Para Santiago Marino, coordenador acadêmico do mestrado em Indústrias Culturais da Universidade de Quilmes e especialista em regulação de meios de comunicação, houve avanços no último ano na distribuição de licenças e a vigência plena da lei fortaleceu a institucionalidade dos organismos vinculados à aplicação dela. Porém, ele acredita que a adequação forçada do Grupo Clarín à lei pode mudar o cenário.
"Se o Clarín obtiver uma medida cautelar que evite a aplicação da lei, o governo vai ter uma desculpa para não aplicar a norma, mas volta a ter um adversário para seu processo político. E o Clarín vai seguir sem se submeter à lei, que é o que deveria acontecer", avalia Marino.
Em comunicado divulgado após o anúncio da adequação compulsória à lei, o Grupo Clarín afirmou que iria recorrer "a todas as instâncias cabíveis para resguardar seus direitos" e que o plano que havia apresentado "se ajusta perfeitamente à lei". O Grupo também acusa o governo de persegui-lo e de aplicar a lei de forma "seletiva e discriminatória".
Diferença de tratamento
A possibilidade de reabertura do processo judicial está diretamente relacionada à diferença de tratamento com que o governo lida com as adequações do Grupo Clarín e de outros grupos de comunicação concentrados. Santiago lembra que 37 planos de adequação foram aceitos, enquanto o do Clarín foi rejeitado e outros dois sequer foram analisados até hoje.
Uma das pendências da AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual) é a análise do plano do grupo Telefónica. "Possui licenças de TV aberta e é operador de telecomunicações, o que a lei proíbe. É uma empresa de capitais espanhóis e, na Argentina, os únicos capitais estrangeiros que podem investir mais de 30% em meios de comunicação são os dos Estados Unidos. A Telefónica ficou com 50% da Entel [antiga Empresa Nacional de Telecomunicações], e, pelo contrato, estaria proibida de ser operadora de radiodifusão", pontua Marino. 
"Os principais planos de adequação aprovados são tão discutíveis quanto o do Clarín, mas o Clarín foi o único grupo ao que a AFSCA puniu com a adequação forçada. O tratamento desigual é muito óbvio, o que aumenta o risco de judicialização", aponta Marino.
Martín Sabatella, presidente da AFSCA:
caso da  Telefónica é diferente do
que aconteceu com o Clarín
Em entrevista ao jornal Página/12, em novembro de 2012, o presidente da AFSCA, Martín Sabatella, diferenciou a  Telefónica Argentina do canal de TV Telefé (Televisión Federal SA), e afirmou que as empresas não possuem ações uma da outra. O mesmo argumento foi usado pelo gerente de relações institucionais do canal, Heber Martínez, em entrevista ao jornal Perfil, em dezembro do mesmo ano.
No entanto, depois de sucessivas operações comerciais, ambas as empresas passaram a depender da Telefónica Espanha, o que coloca o grupo como controlador indireto do canal desde o ano 2000. A página institucional da Telefé, que trazia essa informação, foi modificada no dia seguinte à publicação da entrevista de Sabatella.
Na mesma entrevista ao Página/12, Sabatella afirmou que a Telefé se constituiu como empresa antes da promulgação da lei que limita a 30% o investimento de capitais estrangeiros, motivo pelo qual estaria isenta de cumprir com esse requisito.
Meios alternativos
"O mapa de meios de comunicação hoje é praticamente igual ao de um ano atrás", afirma Fabiana Arencibia, jornalista e integrante da RNMA (Rede Nacional de Meios Alternativos). A Rede pede a elaboração de um Plano Técnico, previsto pela lei para seis meses depois de a aprovação, mas que não foi realizado até agora.


Oficina de literatura promove inclusão em presídios na Argentina

Em "julgamento dos operários", ex-ditador Bignone é condenado pela 4ª vez na Argentina

25 verdades sobre Cristina Kirchner: fundos abutres e o sistema financeiro mundial


O Plano permitiria à AFSCA formular um mapa de meios de comunicação no país e, com isso, reservar 33% do espectro, como previsto pela lei, aos meios de comunicação sem fins lucrativos. O mapa também poderia determinar onde existe maior concentração - as chamadas zonas de conflito - e que tipo de políticas aplicar nessas situações.
"O Plano Técnico é político também, porque com essa informação se faz política de estímulo ao desenvolvimento de novos meios de comunicação", aponta Arencibia. No entanto, a jornalista se queixa de que houve poucos chamados a concurso para frequências de baixa potência, para que meios alternativos possam ocupar o espectro radioelétrico - objeto de regulação da LSCA. "Sem concurso ou autorização direta, tecnicamente não existimos para o Estado. E isso nos impede de ter acesso a subsídios ou editais de fomento", explica.
A autorização direta é dada a meios de baixa potência que atuem em zonas de alta vulnerabilidade, onde não haja conflito e haja espectro. Pela lei, o Estado nacional, os estados, os municípios, as universidades federais, as escolas federais, a Igreja Católica e os povos originários também seriam contemplados pela adjudicação direta de licenças. Arencibia reconhece que, para esse setor, houve avanços com a LSCA, mas reclama que o chamado a concursos para licenças de outro tipo não alteraram significativamente a situação dos meios nucleados na RNMA.
"A lei veio para multiplicar vozes. Para nós, também é preciso multiplicar os discursos. Nossos meios são os únicos que podem realmente garantir a multiplicidade de discursos e uma verdadeira democratização, por fora dos monopólios privados e da repetição do discurso governamental", defende Arencibia.
Internet
O pouco avanço em relação aos meios alternativos não é a única preocupação. Marino reconhece que, apesar da norma que regula a propriedade dos meios de comunicação audiovisuais, a ausência da regulação da internet na agenda política pode gerar novas concentrações no futuro. "Sem uma norma que estabeleça limites para a concentração de propriedade no setor de telecomunicações, o risco é ainda maior, porque a concentração é muito mais marcada. Estamos falando de oligopólios."
Novamente, a falta de atenção ao grupo Telefónica pode ser responsável por um novo cenário de concentração. "O mercado está se adaptando ao processo convergente e a Telefónica seria um ator central. Digamos que o governo nos surpreenda e obrigue o grupo a se desprender de um de seus maiores canais. Ainda assim, teria a metade da infraestrutura de telefonia básica e seria um dos principais operadores de telecomunicação", assinala Marino.
Ele ressalta também que, para além da concentração, o serviço seria afetado. "Seria um problema se tivéssemos que escolher entre uma internet com acesso aberto muito lenta, congestionada e de baixa qualidade ou um serviço caro, veloz e de alta qualidade. Aí aprofundaríamos, mais uma vez, as diferenças econômicas", conclui.

Nenhum comentário: