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quinta-feira, 20 de março de 2025

Mangue Jornalismo: uma experiência sergipana por uma outra comunicação

Diante da conjuntura local sergipana, a Mangue Jornalismo estabeleceu um tripé que a sustenta: a) independência editorial e financeira de governos, empresas privadas, grupos religiosos e partidos políticos; b) publicação de uma reportagem por dia de temas locais que são atravessados pelos direitos humanos; c) transparência completa de suas ações jornalísticas, administrativas e financeiras, inclusive se submetendo a um controle público de um conselho de leitoras e leitores da Mangue.


Bem longe dos grandes centros nacionais, no quase invisível menor estado do Brasil, uma experiência de um outro jornalismo vem sendo realizada. Na esteira do surgimento de mídias independentes nos últimos anos, brotou em Aracaju, capital de Sergipe, a Mangue Jornalismo, um pequeno coletivo de jornalistas com o propósito de propor uma relação comunicativa no tratamento das informações de modo diferenciado e potente.

“Tinha concluído o mestrado e o doutorado em Comunicação e o caminho quase natural seria a universidade. Entretanto, optei por exercer essas formações acadêmicas de modo mais coletivo, convidando comunicadores para a vivência de um jornalismo radicalmente independente e de qualidade, incidindo no sistema de mídia local, na formação de jovens jornalistas e de leitores e produzindo impacto político”, diz Cristian Góes, fundador da Mangue.

Print da página web do Mangue
Jornalismo, que também
 pode ser acessado no celular
No final do ano de 2022, alguns jornalistas liderados por Cristian criaram o Centro de Estudos em Jornalismo e Cultura Cirigype, organização sem fins lucrativos que preparou a chegada em 19 de abril do portal Mangue Jornalismo (www.manguejornalismo.org). A Mangue surge precedida de estudos e planejamento, com identificação das dificuldades e potencialidades.

Para entender o jornalismo da Mangue é preciso olhar o contexto local. A imprensa local - emissoras de rádio e tv, jornais e sites - ou é controlada por grupos políticos ou religiosos ou do governo. Geralmente, todos estão juntos e formam um sistema só, sendo muito bem remunerado pelo poder público. “Nessas condições não há jornalismo, não tem apuração nem vozes críticas. A sociedade recebe publicidade travestida de notícias. A omissão e inversão de temas e acontecimentos favorece o sistema político e econômico local”, informa Cristian.

Diferentemente de outros estados, em Sergipe não existia mídia independente, ou seja, havia um vácuo em que uma camada mais crítica da sociedade local não tinha acesso a um jornalismo com mínima apuração, ético e que revelasse questões que o sistema local não queria abertas. Para atender essa demanda reprimida, a Mangue Jornalismo surge tendo por base uma política editorial assentada na defesa e promoção dos direitos humanos.

O nome Mangue faz referência a Sergipe que, como grande parte do litoral nordestino, foi um grande mangue, sendo destruído desde as invasões europeias do século XVI. “Mangue é lugar de produção e reprodução da vida diversa, plural, das sobrevivências conectadas, um lugar de potência de vida. Mangue aponta para discussão em torno da sua importância nas mudanças climáticas e exige um compromisso do jornalismo. Mangue em cidades como a nossa aponta para resistência, insistência, existência sempre ameaçada pelo capital”, justifica Ana Paula Rocha, repórter e gestora de projetos da Mangue

Mangue jornalismo: reunião do Conselho
de Interlocutores Externos,
analisando, criticando, sugerindo pautas.

Diante da conjuntura local, a Mangue Jornalismo estabeleceu um tripé que a sustenta: a) independência editorial e financeira de governos, empresas privadas, grupos religiosos e partidos políticos; b) publicação de uma reportagem por dia de temas locais que são atravessados pelos direitos humanos; c) transparência completa de suas ações jornalísticas, administrativas e financeiras, inclusive se submetendo a um controle público de um conselho de leitoras e leitores da Mangue.

 “Isso mesmo, não aceitamos receber verbas de publicidade de governos nem de empresas privadas, focamos em reportagens de temáticas que são silenciadas em Sergipe e estabelecemos uma proximidade maiores com nossa audiência com a instalação do conselho de interlocutores externos da Mangue, que se reúne de três em três meses para avaliar de modo crítico o jornalismo e as ações da Mangue. É uma ação de profunda escuta da Mangue”, resume Cristian Góes, doutor em Comunicação e Sociabilidade pela Universidade Federal de Minas Gerais.

A sobrevivência da Mangue tem ocorrido com o apoio direto (Pix) de leitores, assinantes, participação de editais internacionais de fomento ao jornalismo independente e parcerias públicas pontuais - sem contrapartida - com sindicatos de trabalhadores.

 “Nesses quase dois anos, a evolução da Mangue foi algo extraordinário e muito além do que nós tínhamos projetado. Hoje, somos realidade na imprensa local, com incidência no estado, principalmente em razão da insistência em trazer um material jornalístico investigativo, de impacto, de qualidade”, conta Paulo Marques, jornalista e gestor de artes e tecnologia da Mangue.

Nesse curto período, além do site com reportagens publicadas diariamente, de segunda a sexta, a Mangue ainda tem outros produtos, como a newsletter semanal gratuita Catado da Mangue; a Agenda Mangue Cultural (publicada toda sexta); o ebook de download gratuito “Água: um direito humano essencial não pode ser privatizado” (2024, sobre a luta pela privatização da água em Sergipe); a Revista Paulo Freire, produzida em parceria com o Sindicato dos Professores Públicos de Sergipe.

A Mangue também produz e entrega o minicast Caldinho de Sururu, que é semanal, com temas de destaque da semana; o minicast Antessala, que é quinzenal sobre bastidores das reportagens e só para assinantes; Charges (tirinhas) publicadas no Instagram; e o livro impresso exclusivo da Mangue Jornalismo intitulado: “Borracha na cabeça: o golpe e a ditadura militar em Sergipe” (2024).

Para a Mangue, o jornalismo não é um mero espaço de divulgação de acontecimentos, mas um lugar de relação, formação e de incidência na vida das pessoas, da cidade, na agenda da sociedade. Pela Mangue, por exemplo, já passaram vários estagiários de jornalismo - uma contribuição direta com a formação de novos jornalistas.

Em 2024, quase não houve nada que lembrasse os 60 anos do Golpe Militar em Sergipe e a Mangue publicou durante o ano 19 reportagens sobre o tema com foco local, bem como um livro com bom impacto/incidência local sobre o tema, movimentando a cena política.

Em maio de 2024, por exemplo, a Mangue denunciou com exclusividade que Sergipe era o único estado fora do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Três dias depois da reportagem, o governo do estado assinou a adesão ao sistema.

Desde o nascimento, a Mangue não descansa em denunciar a altíssima letalidade policial em Sergipe, que executa uma política pública de morte alegando-se “confronto”. Quando a Mangue começou a divulgar esses casos, com grande repercussão e sem recuar, sinalizou que continuaria atenta e divulgando esse escândalo. “Essa vigilância, compromisso e coragem do jornalismo salva vidas. O fato é que, depois que começamos a divulgar isso, ocorreu uma redução oficial no número de mortes em confronto. Não sei, mas tenho a impressão de que com o nosso trabalho talvez acabamos salvando pelo menos uma ou duas vidas. É para isso que a Mangue existe”, constata Paulo Marques.

Paulo apresenta dados coletados e monitorados pelo Google Analytics. Nos últimos 12 meses, foram mais de 85 mil usuários ativos e 165 mil visualizações no site. A rede social principal (Instagram) da Mangue saiu de pouco mais de 6 mil seguidores para 11,2 mil. A conversão de assinaturas em nossa newsletter (Catado da Mangue) chegou a 500%.

Cristian Góes revela que a Mangue já teve 15 jornalistas, mas hoje só conta com cinco e a equipe divide as contas e o saldo mensal. “O grande desafio é a sustentabilidade, fazer com que muita gente que apoia a Mangue também seja responsável pelo financiamento da organização. As pessoas dizem: ‘gosto demais do jornalismo de vocês, amo o trabalho da Mangue’, bom mas é preciso virar a chave e apoiar com algum recurso. O que a gente arrecada hoje é suficiente para pagar as contas, mas ainda não é possível remunerar nosso trabalho. Esse é um enorme desafio”, afirma.

Um comentário:

Cristian Goes disse...

Muito obrigado, bom camarada Chico.