Diante da conjuntura local sergipana, a Mangue Jornalismo estabeleceu um tripé que a sustenta: a) independência editorial e financeira de governos, empresas privadas, grupos religiosos e partidos políticos; b) publicação de uma reportagem por dia de temas locais que são atravessados pelos direitos humanos; c) transparência completa de suas ações jornalísticas, administrativas e financeiras, inclusive se submetendo a um controle público de um conselho de leitoras e leitores da Mangue.
Bem longe dos grandes centros nacionais, no quase invisível menor estado do Brasil, uma experiência de um outro jornalismo vem sendo realizada. Na esteira do surgimento de mídias independentes nos últimos anos, brotou em Aracaju, capital de Sergipe, a Mangue Jornalismo, um pequeno coletivo de jornalistas com o propósito de propor uma relação comunicativa no tratamento das informações de modo diferenciado e potente.
“Tinha concluído o mestrado e o doutorado em Comunicação e o
caminho quase natural seria a universidade. Entretanto, optei por exercer essas
formações acadêmicas de modo mais coletivo, convidando comunicadores para a
vivência de um jornalismo radicalmente independente e de qualidade, incidindo
no sistema de mídia local, na formação de jovens jornalistas e de leitores e
produzindo impacto político”, diz Cristian Góes, fundador da Mangue.
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Print da página web do Mangue Jornalismo, que também pode ser acessado no celular |
Para entender o jornalismo da Mangue é preciso olhar o
contexto local. A imprensa local - emissoras de rádio e tv, jornais e sites -
ou é controlada por grupos políticos ou religiosos ou do governo. Geralmente,
todos estão juntos e formam um sistema só, sendo muito bem remunerado pelo
poder público. “Nessas condições não há jornalismo, não tem apuração nem vozes
críticas. A sociedade recebe publicidade travestida de notícias. A omissão e
inversão de temas e acontecimentos favorece o sistema político e econômico
local”, informa Cristian.
Diferentemente de outros estados, em Sergipe não existia
mídia independente, ou seja, havia um vácuo em que uma camada mais crítica da
sociedade local não tinha acesso a um jornalismo com mínima apuração, ético e
que revelasse questões que o sistema local não queria abertas. Para atender
essa demanda reprimida, a Mangue Jornalismo surge tendo por base uma política
editorial assentada na defesa e promoção dos direitos humanos.
O nome Mangue faz referência a Sergipe que, como grande
parte do litoral nordestino, foi um grande mangue, sendo destruído desde as
invasões europeias do século XVI. “Mangue é lugar de produção e reprodução da
vida diversa, plural, das sobrevivências conectadas, um lugar de potência de
vida. Mangue aponta para discussão em torno da sua importância nas mudanças
climáticas e exige um compromisso do jornalismo. Mangue em cidades como a nossa
aponta para resistência, insistência, existência sempre ameaçada pelo capital”,
justifica Ana Paula Rocha, repórter e gestora de projetos da Mangue
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Mangue jornalismo: reunião do Conselho de Interlocutores Externos, analisando, criticando, sugerindo pautas. |
Diante da conjuntura local, a Mangue Jornalismo estabeleceu um tripé que a sustenta: a) independência editorial e financeira de governos, empresas privadas, grupos religiosos e partidos políticos; b) publicação de uma reportagem por dia de temas locais que são atravessados pelos direitos humanos; c) transparência completa de suas ações jornalísticas, administrativas e financeiras, inclusive se submetendo a um controle público de um conselho de leitoras e leitores da Mangue.
“Isso mesmo, não
aceitamos receber verbas de publicidade de governos nem de empresas privadas,
focamos em reportagens de temáticas que são silenciadas em Sergipe e
estabelecemos uma proximidade maiores com nossa audiência com a instalação do
conselho de interlocutores externos da Mangue, que se reúne de três em três
meses para avaliar de modo crítico o jornalismo e as ações da Mangue. É uma
ação de profunda escuta da Mangue”, resume Cristian Góes, doutor em Comunicação
e Sociabilidade pela Universidade Federal de Minas Gerais.
A sobrevivência da Mangue tem ocorrido com o apoio direto
(Pix) de leitores, assinantes, participação de editais internacionais de
fomento ao jornalismo independente e parcerias públicas pontuais - sem
contrapartida - com sindicatos de trabalhadores.
“Nesses quase dois
anos, a evolução da Mangue foi algo extraordinário e muito além do que nós
tínhamos projetado. Hoje, somos realidade na imprensa local, com incidência no
estado, principalmente em razão da insistência em trazer um material
jornalístico investigativo, de impacto, de qualidade”, conta Paulo Marques,
jornalista e gestor de artes e tecnologia da Mangue.
Nesse curto período, além do site com reportagens publicadas
diariamente, de segunda a sexta, a Mangue ainda tem outros produtos, como a
newsletter semanal gratuita Catado da Mangue; a Agenda Mangue Cultural
(publicada toda sexta); o ebook de download gratuito “Água: um direito humano
essencial não pode ser privatizado” (2024, sobre a luta pela privatização da
água em Sergipe); a Revista Paulo Freire, produzida em parceria com o Sindicato
dos Professores Públicos de Sergipe.
A Mangue também produz e entrega o minicast Caldinho de
Sururu, que é semanal, com temas de destaque da semana; o minicast Antessala,
que é quinzenal sobre bastidores das reportagens e só para assinantes; Charges
(tirinhas) publicadas no Instagram; e o livro impresso exclusivo da Mangue
Jornalismo intitulado: “Borracha na cabeça: o golpe e a ditadura militar em
Sergipe” (2024).
Para a Mangue, o jornalismo não é um mero espaço de
divulgação de acontecimentos, mas um lugar de relação, formação e de incidência
na vida das pessoas, da cidade, na agenda da sociedade. Pela Mangue, por
exemplo, já passaram vários estagiários de jornalismo - uma contribuição direta
com a formação de novos jornalistas.
Em 2024, quase não houve nada que lembrasse os 60 anos do
Golpe Militar em Sergipe e a Mangue publicou durante o ano 19 reportagens sobre
o tema com foco local, bem como um livro com bom impacto/incidência local sobre
o tema, movimentando a cena política.
Em maio de 2024, por exemplo, a Mangue denunciou com
exclusividade que Sergipe era o único estado fora do Sistema Nacional de
Promoção da Igualdade Racial. Três dias depois da reportagem, o governo do
estado assinou a adesão ao sistema.
Desde o nascimento, a Mangue não descansa em denunciar a
altíssima letalidade policial em Sergipe, que executa uma política pública de
morte alegando-se “confronto”. Quando a Mangue começou a divulgar esses casos,
com grande repercussão e sem recuar, sinalizou que continuaria atenta e
divulgando esse escândalo. “Essa vigilância, compromisso e coragem do
jornalismo salva vidas. O fato é que, depois que começamos a divulgar isso,
ocorreu uma redução oficial no número de mortes em confronto. Não sei, mas
tenho a impressão de que com o nosso trabalho talvez acabamos salvando pelo
menos uma ou duas vidas. É para isso que a Mangue existe”, constata Paulo
Marques.
Paulo apresenta dados coletados e monitorados pelo Google
Analytics. Nos últimos 12 meses, foram mais de 85 mil usuários ativos e 165 mil
visualizações no site. A rede social principal (Instagram) da Mangue saiu de
pouco mais de 6 mil seguidores para 11,2 mil. A conversão de assinaturas em
nossa newsletter (Catado da Mangue) chegou a 500%.
Cristian Góes revela que a Mangue já teve 15 jornalistas,
mas hoje só conta com cinco e a equipe divide as contas e o saldo mensal. “O
grande desafio é a sustentabilidade, fazer com que muita gente que apoia a
Mangue também seja responsável pelo financiamento da organização. As pessoas
dizem: ‘gosto demais do jornalismo de vocês, amo o trabalho da Mangue’, bom mas
é preciso virar a chave e apoiar com algum recurso. O que a gente arrecada hoje
é suficiente para pagar as contas, mas ainda não é possível remunerar nosso
trabalho. Esse é um enorme desafio”, afirma.
Um comentário:
Muito obrigado, bom camarada Chico.
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