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quinta-feira, 20 de março de 2025

Mangue Jornalismo: uma experiência sergipana por uma outra comunicação

Diante da conjuntura local sergipana, a Mangue Jornalismo estabeleceu um tripé que a sustenta: a) independência editorial e financeira de governos, empresas privadas, grupos religiosos e partidos políticos; b) publicação de uma reportagem por dia de temas locais que são atravessados pelos direitos humanos; c) transparência completa de suas ações jornalísticas, administrativas e financeiras, inclusive se submetendo a um controle público de um conselho de leitoras e leitores da Mangue.


Bem longe dos grandes centros nacionais, no quase invisível menor estado do Brasil, uma experiência de um outro jornalismo vem sendo realizada. Na esteira do surgimento de mídias independentes nos últimos anos, brotou em Aracaju, capital de Sergipe, a Mangue Jornalismo, um pequeno coletivo de jornalistas com o propósito de propor uma relação comunicativa no tratamento das informações de modo diferenciado e potente.

“Tinha concluído o mestrado e o doutorado em Comunicação e o caminho quase natural seria a universidade. Entretanto, optei por exercer essas formações acadêmicas de modo mais coletivo, convidando comunicadores para a vivência de um jornalismo radicalmente independente e de qualidade, incidindo no sistema de mídia local, na formação de jovens jornalistas e de leitores e produzindo impacto político”, diz Cristian Góes, fundador da Mangue.

Print da página web do Mangue
Jornalismo, que também
 pode ser acessado no celular
No final do ano de 2022, alguns jornalistas liderados por Cristian criaram o Centro de Estudos em Jornalismo e Cultura Cirigype, organização sem fins lucrativos que preparou a chegada em 19 de abril do portal Mangue Jornalismo (www.manguejornalismo.org). A Mangue surge precedida de estudos e planejamento, com identificação das dificuldades e potencialidades.

Para entender o jornalismo da Mangue é preciso olhar o contexto local. A imprensa local - emissoras de rádio e tv, jornais e sites - ou é controlada por grupos políticos ou religiosos ou do governo. Geralmente, todos estão juntos e formam um sistema só, sendo muito bem remunerado pelo poder público. “Nessas condições não há jornalismo, não tem apuração nem vozes críticas. A sociedade recebe publicidade travestida de notícias. A omissão e inversão de temas e acontecimentos favorece o sistema político e econômico local”, informa Cristian.

Diferentemente de outros estados, em Sergipe não existia mídia independente, ou seja, havia um vácuo em que uma camada mais crítica da sociedade local não tinha acesso a um jornalismo com mínima apuração, ético e que revelasse questões que o sistema local não queria abertas. Para atender essa demanda reprimida, a Mangue Jornalismo surge tendo por base uma política editorial assentada na defesa e promoção dos direitos humanos.

O nome Mangue faz referência a Sergipe que, como grande parte do litoral nordestino, foi um grande mangue, sendo destruído desde as invasões europeias do século XVI. “Mangue é lugar de produção e reprodução da vida diversa, plural, das sobrevivências conectadas, um lugar de potência de vida. Mangue aponta para discussão em torno da sua importância nas mudanças climáticas e exige um compromisso do jornalismo. Mangue em cidades como a nossa aponta para resistência, insistência, existência sempre ameaçada pelo capital”, justifica Ana Paula Rocha, repórter e gestora de projetos da Mangue

Mangue jornalismo: reunião do Conselho
de Interlocutores Externos,
analisando, criticando, sugerindo pautas.

Diante da conjuntura local, a Mangue Jornalismo estabeleceu um tripé que a sustenta: a) independência editorial e financeira de governos, empresas privadas, grupos religiosos e partidos políticos; b) publicação de uma reportagem por dia de temas locais que são atravessados pelos direitos humanos; c) transparência completa de suas ações jornalísticas, administrativas e financeiras, inclusive se submetendo a um controle público de um conselho de leitoras e leitores da Mangue.

 “Isso mesmo, não aceitamos receber verbas de publicidade de governos nem de empresas privadas, focamos em reportagens de temáticas que são silenciadas em Sergipe e estabelecemos uma proximidade maiores com nossa audiência com a instalação do conselho de interlocutores externos da Mangue, que se reúne de três em três meses para avaliar de modo crítico o jornalismo e as ações da Mangue. É uma ação de profunda escuta da Mangue”, resume Cristian Góes, doutor em Comunicação e Sociabilidade pela Universidade Federal de Minas Gerais.

A sobrevivência da Mangue tem ocorrido com o apoio direto (Pix) de leitores, assinantes, participação de editais internacionais de fomento ao jornalismo independente e parcerias públicas pontuais - sem contrapartida - com sindicatos de trabalhadores.

 “Nesses quase dois anos, a evolução da Mangue foi algo extraordinário e muito além do que nós tínhamos projetado. Hoje, somos realidade na imprensa local, com incidência no estado, principalmente em razão da insistência em trazer um material jornalístico investigativo, de impacto, de qualidade”, conta Paulo Marques, jornalista e gestor de artes e tecnologia da Mangue.

Nesse curto período, além do site com reportagens publicadas diariamente, de segunda a sexta, a Mangue ainda tem outros produtos, como a newsletter semanal gratuita Catado da Mangue; a Agenda Mangue Cultural (publicada toda sexta); o ebook de download gratuito “Água: um direito humano essencial não pode ser privatizado” (2024, sobre a luta pela privatização da água em Sergipe); a Revista Paulo Freire, produzida em parceria com o Sindicato dos Professores Públicos de Sergipe.

A Mangue também produz e entrega o minicast Caldinho de Sururu, que é semanal, com temas de destaque da semana; o minicast Antessala, que é quinzenal sobre bastidores das reportagens e só para assinantes; Charges (tirinhas) publicadas no Instagram; e o livro impresso exclusivo da Mangue Jornalismo intitulado: “Borracha na cabeça: o golpe e a ditadura militar em Sergipe” (2024).

Para a Mangue, o jornalismo não é um mero espaço de divulgação de acontecimentos, mas um lugar de relação, formação e de incidência na vida das pessoas, da cidade, na agenda da sociedade. Pela Mangue, por exemplo, já passaram vários estagiários de jornalismo - uma contribuição direta com a formação de novos jornalistas.

Em 2024, quase não houve nada que lembrasse os 60 anos do Golpe Militar em Sergipe e a Mangue publicou durante o ano 19 reportagens sobre o tema com foco local, bem como um livro com bom impacto/incidência local sobre o tema, movimentando a cena política.

Em maio de 2024, por exemplo, a Mangue denunciou com exclusividade que Sergipe era o único estado fora do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Três dias depois da reportagem, o governo do estado assinou a adesão ao sistema.

Desde o nascimento, a Mangue não descansa em denunciar a altíssima letalidade policial em Sergipe, que executa uma política pública de morte alegando-se “confronto”. Quando a Mangue começou a divulgar esses casos, com grande repercussão e sem recuar, sinalizou que continuaria atenta e divulgando esse escândalo. “Essa vigilância, compromisso e coragem do jornalismo salva vidas. O fato é que, depois que começamos a divulgar isso, ocorreu uma redução oficial no número de mortes em confronto. Não sei, mas tenho a impressão de que com o nosso trabalho talvez acabamos salvando pelo menos uma ou duas vidas. É para isso que a Mangue existe”, constata Paulo Marques.

Paulo apresenta dados coletados e monitorados pelo Google Analytics. Nos últimos 12 meses, foram mais de 85 mil usuários ativos e 165 mil visualizações no site. A rede social principal (Instagram) da Mangue saiu de pouco mais de 6 mil seguidores para 11,2 mil. A conversão de assinaturas em nossa newsletter (Catado da Mangue) chegou a 500%.

Cristian Góes revela que a Mangue já teve 15 jornalistas, mas hoje só conta com cinco e a equipe divide as contas e o saldo mensal. “O grande desafio é a sustentabilidade, fazer com que muita gente que apoia a Mangue também seja responsável pelo financiamento da organização. As pessoas dizem: ‘gosto demais do jornalismo de vocês, amo o trabalho da Mangue’, bom mas é preciso virar a chave e apoiar com algum recurso. O que a gente arrecada hoje é suficiente para pagar as contas, mas ainda não é possível remunerar nosso trabalho. Esse é um enorme desafio”, afirma.

terça-feira, 11 de março de 2025

Uso de telas: Governo lança guia para uso saudável de telas por crianças e adolescentes

 


A publicação "Crianças, Adolescentes e Telas: Guia sobre Uso de Dispositivos Digitais" oferece ainda recomendações para nortear o uso seguro dos dispositivos


Texto da Secom/PR

O Governo Federal lança nesta terça-feira, 11 de março, a publicação “Crianças, Adolescentes e Telas: Guia sobre Uso de Dispositivos Digitais”, passo importante para a construção de um ambiente digital mais seguro para crianças e adolescentes brasileiros. Coordenado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom PR), com participação de outros seis ministérios – Casa Civil da Presidência, ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública, dos Direitos Humanos e da Cidadania, da Educação e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome –, o documento norteia o uso saudável das telas, além de promover práticas que reduzam os riscos associados ao tempo excessivo diante dos dispositivos.


O Guia oferece ainda recomendações para pais, responsáveis e educadores, abordando temas como o impacto das telas na saúde mental, segurança online, cyberbullying e a importância do equilíbrio entre atividades digitais e interações no mundo real.

Pesquisa

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, que apresenta os principais resultados sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil, 93% da população de 9 a 17 anos é usuária de internet no país, o que representa atualmente cerca de 25 milhões de pessoas. E aproximadamente 23% dos usuários de internet de 9 a 17 anos reportaram ter acessado a internet pela primeira vez até os 6 anos de idade. A proporção era de 11% em 2015.

Marcos de referência

Recentemente, diversos países reforçaram documentos de referência para serviços digitais em relação à proteção de direitos de crianças e adolescentes. O Guia lançado pelo governo brasileiro adota, entre outras, as seguintes recomendações:

  • Recomenda-se o não uso de telas para crianças com menos de 2 anos, salvo para contato com familiares por videochamada.
  • Orienta-se que crianças (antes dos 12 anos) não tenham smartphone próprios.
  • O acesso a redes sociais deve observar a Classificação Indicativa.
  • O uso de dispositivos eletrônicos, aplicativos e redes sociais durante a adolescência (12 a 17 anos) deve se dar com acompanhamento familiar ou de educadores.
  • Deve ser estimulado o uso de dispositivos digitais por crianças ou adolescentes com deficiência, independentemente de faixa etária, para fins de acessibilidade.

O guia Crianças, adolescentes e telas pode ser baixado gratuitamente, aqui

Desafio das telas

Ely Santos, moradora de Teresina (PI), é mãe de Asenathe, uma menina que iniciou o contato com as telas antes mesmo de completar um ano de vida. Com cerca de oito a nove meses de idade, a televisão e o YouTube entraram na rotina da pequena como uma forma de distração, permitindo que a mãe conseguisse realizar tarefas domésticas com mais tranquilidade.

"Não que eu goste. Até hoje minha opinião é que não é uma boa influência para as crianças. Porém, foi um meio que aceitamos para que pudéssemos realizar algo mais sossegado ", conta.

Ely, ressaltando que, embora tivesse receio quanto ao uso das telas, acabou utilizando para obter um pouco de sossego para executar as tarefas do lar.

A rotina de Asenathe não tem horários definidos para o uso da televisão. "Surge mesmo pela necessidade do dia a dia. É quando ela acorda, toma leite ou à noite, antes de dormir", explica Ely. No entanto, a mãe reconhece que isso interfere até mesmo no sono da filha. "Hoje ela já pede o controle para ligar no YouTube, mesmo sem saber o que significa, mas ela sabe que vai assistir os vídeos que ela gosta e, inclusive, já escolhe o que deseja assistir”.

A maior parte dos vídeos é assistida na televisão. Ely compartilhou que, quando está presente, Asenathe prefere assistir aos vídeos na companhia da mãe. "Se estou por perto, ela quer que eu assista junto." Uma das dificuldades é o controle sobre o uso das telas durante as refeições. "No início, eu não deixava ela assistir quando ia fazer as refeições, mas depois perdemos o controle. Na maioria das vezes ela faz as refeições assistindo a vídeos do YouTube”, conta Ely.

A mãe se preocupa com o impacto que o tempo em frente à TV pode ter sobre a filha. "Às vezes ela quer assistir e chora, mas se tem algo mais atrativo que chame a atenção dela, como brincar ou alimentar a galinha dela, ela deixa de lado." A mãe também busca alternativas educativas para os vídeos, optando por conteúdos que ensinam cores, vogais e até louvores bíblicos. "Ela aprende muito rápido os louvores e os gestos. Em vídeos violentos, eu digo que é feio, e ela repete."

Restrição do uso do celular nas escolas

O Guia dialoga com a Lei nº 15.100/2025, que restringe a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, nos estabelecimentos públicos e privados de educação básica durante as aulas, recreios e intervalos. A medida visa proteger a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes.

A nova legislação permite exceções apenas para fins pedagógicos ou didáticos, desde que acompanhadas por professores, ou para estudantes que necessitem de acessibilidade. O objetivo é garantir que os dispositivos móveis sejam utilizados de forma equilibrada e benéfica para o aprendizado dos estudantes, evitando os riscos associados ao uso indiscriminado.

Conscientização

A lei também determina que as redes de ensino e escolas desenvolvam estratégias para abordar o tema do sofrimento psíquico e da saúde mental dos estudantes. Isso inclui alertar sobre os riscos do uso imoderado de aparelhos e do acesso a conteúdos impróprios, além de oferecer treinamentos, capacitação e espaços de escuta e acolhimento para detectar situações de sofrimento psíquico.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Leonel Brizola, a vida em livro


Jornalista Cleber Dioni Tentardini  escreve sobre o governador de dois estados do Brasil

 

Por Márcia Turcato

Único brasileiro eleito pelo voto popular para governar dois estados, o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. Este feito cabe ao engenheiro Leonel de Moura Brizola (1922-2004), gaúcho da cidade de Carazinho. Menino pobre que trocou o interior pela capital, Porto Alegre, em 1936, em busca de trabalho e de estudo. Foi engraxate e ascensorista, e em 1946 ingressou no curso de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Isso mudou o rumo da sua própria história. Trocou a mesa de cálculos pela política e deu início a uma trajetória singular. A vida de Brizola é revelada página a página no mais novo livro do jornalista Cleber Dioni Tentardini, “No fio da história”, com lançamento nacional marcado para o mês de março e pré-venda já aberta nas plataformas digitais.

Deputado estadual, deputado federal, prefeito de Porto Alegre, governador do Estado, em dez anos – de sua estreia em 1947 à eleição espetacular de 1958. Brizola pagou o preço de permanecer fiel ao povo de onde emergiu. Se o tivessem apanhado nos dias do golpe de 1964, ele teria sido morto”, conta o autor do livro.

Brizola voltou ao Brasil depois de 15 anos de exílio e perseguições que nunca cessaram, para retomar o fio de sua trajetória. Foi duas vezes governador do Rio de Janeiro, mas as elites mais uma vez o impediram de chegar à presidência da República. Esse personagem fascinante da história do Brasil ganha uma biografia, muito bem ilustrada, resultado de duas décadas de pesquisas, entrevistas e reportagens feitas por Tentardini.

O autor foi a campo vasculhar arquivos históricos, museus, bibliotecas, secretarias de escolas, igrejas e cartórios, até reconstituir a vida dos pais do menino que se tornou Brizola e da região onde nasceu e cresceu no Norte do Rio Grande do Sul. Tentardini foi o único a entrevistar os irmãos do político e a sobrinha, criada como sua irmã. Também encontrou outros familiares, colegas e professores das séries iniciais e amigos de infância.

A obra está recheada de curiosidades, vitórias, derrotas, decepções, amores, fúrias, perseguições, reconciliações, conchavos, e dezenas de fotos, antigas e atuais, charges e reproduções de jornais, inclusive um achado inédito, guardado em cofre: a histórica metralhadora com que o governador gaúcho se movimentava no Palácio Piratini, em Porto Alegre, sede do governo do estado, durante o Movimento da Legalidade, o maior acontecimento político que sacudiu o Brasil após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961.

O livro remonta cenários e esclarece passagens marcantes da política nacional e internacional através de entrevistas e valiosos trabalhos acadêmicos, divulgados recentemente, e das memórias inabaláveis de jornalistas como Flávio Tavares e Carlos Bastos, e de militares como Emílio Neme e Pedro Alvarez. 

Sobre o autor

Gaúcho de Santana do Livramento, Cleber Dioni Tentardini é jornalista, com quase três décadas de carreira em jornais impressos, revistas e portais jornalísticos, com vários prêmios conquistados. É autor de Patrimônio Ameaçado, sobre as fundações gaúchas extintas; O menino que se tornou Brizola, livro-reportagem; e Usina Eólica Cerro Chato, a primeira usina de geração de energia a partir dos ventos construída no Pampa pela Eletrosul/Eletrobras. Coautor dos perfis parlamentares de João Goulart e Leonel Brizola, da Assembleia Legislativa do RS, e pesquisador de uma dúzia de livros, entre os mais recentes, História Ilustrada do Rio Grande do Sul e Viamão 300 anos. 

Serviço:

O livro está em pré-lançamento com valor promocional de R$ 80,00 por R$ 65,00.
Informações pelo e-mail dfatoeditora@gmail.com.
O lançamento, pela D’fato Editora Jornalística, está previsto para março deste ano.

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Um passeio pelo musical brasileiro em livro

Fernando Marques, professor da UnB, dramaturgo e compositor, referência em pesquisa sobre o teatro musical no Brasil, lança no dia 5 de dezembro, na Livraria da Travessa no Casa Park, seu oitavo livro: Vivendo de brisa: a história inventada do compositor Geraldo de Matos.


Por Carla Spegiorin

O teatro musical no Brasil tem uma tradição que remonta ao século XIX, em especial nas últimas décadas daquele século e nas primeiras do XX. Autores como Arthur Azevedo, Moreira Sampaio e tantos outros, em colaboração com maestros de nomes hoje pouco lembrados (entre eles, Nicolino Milano e Assis Pacheco), movimentaram o Rio de Janeiro com seus espetáculos musicais e produziram as chamadas enchentes, isto é, motivaram grandes plateias com espetáculos de fato populares. No entanto, no Brasil, as publicações de dramaturgia musical são escassas, muito menos do que se imagina. Vivendo de brisa (ed. Perspectiva), oitavo livro de Fernando Marques, professor de artes cênicas da UnB e um dos maiores especialistas em teatro musical no país, chega às livrarias neste mês de dezembro, trazendo um passeio pelos musicais brasileiros. A autor tem pós-doutorado em Literatura e História na Universidade de Lisboa com pesquisa sobre ideias humanistas.

Os musicais políticos dos anos 1960 e 1970, tem um amplo repertório: de Chico Buarque, há Calabar, Gota d’água e Ópera do malandro; de Dias Gomes, há O rei de Ramos e Vargas. A comédia Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, encenada pelo Grupo Opinião em 1966, foi reeditada neste ano de 2024. De Maria Adelaide Amaral, em homenagem de 2001 à compositora Chiquinha Gonzaga, temos Ó abre alas.

No entanto, raras vezes essas publicações incluem a música, exceção feita à Ópera do malandro apenas quanto às partituras, que aparecem no final do volume (a edição da Ópera é de 1978, e a peça não foi reeditada). No caso dessas peças de Chico Buarque e parceiros (Ruy Guerra no caso de Calabar, Paulo Pontes no de Gota d’água), há gravação das canções. Também existem edições bem recentes de trabalhos do Núcleo Experimental de Teatro, companhia de São Paulo, mas o registro das músicas, na maioria das vezes, limita-se às partituras.

Chiquinha Gonzaga atuou a partir de 1885 (foi a primeira mulher a reger uma orquestra no país). Entre 1885 e 1933, ela musicou nada menos que 77 peças teatrais de vários gêneros (operetas, comédias, revistas). Foi a compositora das canções de Forrobodó, texto de Luiz Peixoto e Carlos Bittencourt, opereta que obteve um enorme sucesso: foram 1500 apresentações a partir da estreia em 1912. Em 1939, o erudito-popular Radamés Gnatalli teve êxito com a orquestração que fez para Aquarela do Brasil, samba-exaltação de Ary Barroso, tendo regido as orquestras das rádios Mayrink Veiga e Nacional no espetáculo Joujoux e balangandãs, exibido no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Em meados do século, surge uma nova geração de autores, atores, diretores e compositores: Dias Gomes, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Edu Lobo, Geni Marcondes, depois Chico Buarque, Francis Hime. "Hoje, os musicais no Brasil oscilam entre a sedução do espetáculo norte-americano – que deve ser conhecido, é claro, mas não imitado – e as fontes brasileiras, ricas e antigas o bastante para inspirar o novo, que vem acontecendo também com a incorporação de fontes afro-brasileiras. O campo dos musicais é vasto e merece ser meditado", explica Fernando Marques.

O livro

Vivendo de brisa (Ed. Perspectiva), de Marques, é uma obra que procura preencher a escassez de publicações voltadas à dramaturgia musical brasileira, em especial sobre esse período riquíssimo conhecido como a Era de Ouro do rádio, quando este veículo se popularizou e tornou-se um meio de entretenimento no país inteiro.

A publicação contém 13 canções autorais e inéditas e o leitor é convidado a apontar seu celular para o QR code e se entregar ao ritmo de samba-canção, samba sincopado, fox, frevo, baião e valsa. Vivendo de brisa é para ser lido e ouvido.

O texto, entremeado por canções que estão nas plataformas e no livro, conta a trajetória de um compositor negro, de origem humilde, que busca se lançar como artista profissional, fazer sucesso e ascender socialmente no Rio de Janeiro. Inspirada livremente nas figuras do fluminense Wilson Baptista (1913-1968) e do mineiro Geraldo Pereira (1918-1955), o enredo retrata a ascensão e a queda do compositor e malandro Geraldo de Matos. À época, para obter sucesso muitos compositores precisavam dividir a autoria de seus sambas com intérpretes famosos para conseguir tocar suas músicas nas rádios.

Os diálogos astutos, carregados de expressões da época, deixam claro para o leitor qual era o contexto político, social e cultural vigente – a história se passa do final da década de 1930 até meados dos anos 40, em plena Era Vargas. No desenrolar, o que se vê é um personagem sempre na corda bamba, dividido entre dois amores, que encanta com seus belos sambas, mas que desperta a indignação com seu comportamento sorrateiro e antiético.

– "Situar o enredo nesse momento histórico é uma escolha estratégica (...), pois direciona o foco de atenção do leitor e do espectador para uma era em que o rádio havia se estabelecido como o grande veículo de massas, e em que o mercado cultural ia pouco a pouco se configurando e deixando suas marcas na fisionomia do país", assinala, na quarta capa do livro, a professora e pesquisadora da USP Maria Silvia Betti.

O autor

José Fernando Marques de Freitas Filho é professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB na área de Teoria Teatral, jornalista, escritor e compositor. 

Fez pós-doutorado em Literatura e História na Universidade de Lisboa com pesquisa sobre ideias humanistas (2017/2018). Publicou os livros Retratos de mulher (poemas, Varanda, 2001); Últimos: comédia musical em dois atos (livro-CD, Perspectiva, 2008); Contos canhotos (LGE, 2010); Zé: peça em um ato (Perspectiva, 2003; 2ª. ed.: É Realizações, 2013); Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970 (Perspectiva, 2014); e A província dos diamantes: ensaios sobre teatro (Autêntica/Siglaviva, 2016). Autor da comédia A quatro, encenada em Brasília em 2008, e das canções do CD De cor (2014), da cantora Wilzy Carioca. Colaborações em jornais como Correio Braziliense, Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, revistas como Folhetim e Cult e sites como Teatrojornal.

Ficha técnica 

(álbum): Vivendo de brisa, canções da comédia musical

Composições, voz e violão: Fernando Marques

Piano, baixo, arranjos e direção musical: José Cabrera

Violão: Jaime Ernest Dias

Percussão: Jorge Macarrão

Cantores convidados: George Durand, Indiana Nomma, Laura Lobo e Roger

Vieira

Gravação, mixagem e masterização: George Durand (Durand Estúdio –

Produção & Música). | Ano: 2023/2024

Serviço | Lançamento do livro Vivendo de brisa: a história inventada do compositor Geraldo de Matos

Autor: Fernando Marques

Data: quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Horário: 19h

Local: Livraria da Travessa, Casa Park, Brasília (DF)

Editora: Perspectiva | 176 páginas

Preço: R$ 52,40


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Há 40 anos, mataram o Mário Eugênio

Perto da meia-noite de um domingo, Marão saía do Setor de Rádio e TV Sul de Brasília, após gravar seu programa de rádio. No térreo, enquanto abria a porta do carro para ir embora, foi atacado por indivíduos em dois veículos da segurança pública.

 

Por William França, publicado originalmente no Correio da Manhã - edição DF, coluna Brasilianas

Dia 11 de novembro, completaram-se 40 anos de um fato histórico que abalou Brasília: a morte do jornalista Mário Eugênio. Ele era um verdadeiro mito da reportagem policial. Escrevia no “Correio Braziliense” e tinha um programa diário da Rádio Planalto, o “Gogó das Sete”, líder de audiência.

Em 1984, no último ano da ditadura, ele teve coragem de denunciar um Esquadrão da Morte montado por militares do Exército e policiais do DF, que praticavam crimes diversos.

Mário Eugênio acabou recebendo um tiro de escopeta na cabeça e outros cinco tiros no corpo. Foram disparados pelo atirador de elite conhecido nos meios policiais como Divino 45.

Perto da meia-noite de um domingo, Marão saía do Setor de Rádio e TV Sul de Brasília, após gravar seu programa de rádio. No térreo, enquanto abria a porta do carro para ir embora, foi atacado por indivíduos em dois veículos da segurança pública.

Este colunista, à época estudante de Jornalismo no CEUB, era um ouvinte do programa. Acompanhou o noticiário pelo que a equipe do “Correio Braziliense” divulgava – embora, naquela época, não se soubesse tanto dos bastidores.

Hoje, sabe-se que a investigação do crime se deu pelos jornalistas do Correio. Rendeu perseguições, ameaças de morte e um trabalho de abafa por parte das autoridades da Secretaria de Segurança do DF e do Exército. Mas também rendeu um Prêmio Esso Nacional à equipe do jornal (o maior prêmio do Jornalismo brasileiro) e o Prêmio Herzog de Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo.

Toda essa história, rica em detalhes, está contada por um dos mais envolvidos em toda a apuração e resolução do crime, o jornalista Renato Riella. Então secretário-executivo de Redação do “Correio Braziliense”, ele chegou no local do crime quando Mário Eugênio ainda sangrava. “Brasilianas” reproduz o relato de Riella na versão digital da coluna.

 Acesse o link da coluna do jornal e boa leitura!

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Pecados do conservadorismo católico: a visão poética da jornalista Raíssa Abreu


Na Capital Federal, jornalista e escritora mineira lança livro de poemas autobiográficos que expõe pecados do conservadorismo católico do interior


Objeto estranho, recém-editado pela Patuá editora, é uma obra autobiográfica que traz cenas da infância e da adolescência da escritora e jornalista, Raíssa Abreu, 43 anos, reelaboradas numa linguagem onírica a partir de objetos que evocam lembranças, como um snoopy de pelúcia, um clichê de jornal, um monóculo, um terço, um par de sapatos. O cenário é uma comunidade católica tradicional do Sul de Minas Gerais.

Num cenário sombrio-kitsch, de múltiplos silenciamentos e mortes anunciadas na torre da igreja, são esses seres inanimados o pretexto para falar, ainda que pelas beiradas, de assuntos incômodos - a pobreza, a misoginia, a meritocracia, a intolerância, o suicídio - e para insinuar visadas menos trágicas sobre as personagens.

Sinopse

A subversão maior é aquilo que escapa à língua, que fica em algum lugar entre o fim de um verso e o tropeço de outro. No desencontro entre palavra e imagem. O segredo da moça do cabelo alisado. A ave-maria perdida no terço.

A trajetória de um corpo estranho pela vidamorte de uma família cristã numa cidade do interior, marcada pela vigilância da tradição e pela meritocracia. O que pode acontecer à hierarquia bem marcada entre os pontos que giram ao redor do objeto totêmico quando alguém olha para a torre da igreja e enxerga a ponta de um lápis?

"A escrita de Abreu, afeita ao nervo da linguagem, estranhamente torna o simples algo escorregadio, que conduz a uma imersão em imagens pouco vistas, pois os objetos aqui são ricamente ativados pelo que extrapolam em relação às suas acepções, enviesando à imaginação o ordinário e o transformando em preciosidade" (da orelha de Léo Tavares).

A autora

Há 19 anos em Brasília, Raíssa Abreu é jornalista e estuda Letras na UnB. Nascida em em Pedralva, sul de Minas Gerais, teve uma infância em uma casa lotada de papel-jornal e de imagens de Nossa Senhora. Hoje, faz parte do coletivo de poesia cerratense Nexo Grupal.

Objeto estranho é seu livro inaugural. O lançamento acontece na quinta-feira (31/10), a partir das 19h, no Quanto Café, e contará com uma conversa mediada pelo escritor e artista plástico, Léo Tavares, (“Situações” e “O Congresso da Melancolia”) . O bate-papo será seguido de sessão de autógrafos.

Serviço:

  • O que?  Lançamento da obra Objeto Estranho - Ed. Patuá.
  • Quem?  Raíssa Abreu
  • Quando?  31/10, quinta-feira, às 19h
  • Onde?  Quanto Café CLN 103, Bl A

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Jornalismo: Brasil, Israel e a pós-verdade


O Exército Brasileiro negociava a compra de 36 unidades de um tipo de
blindado voltado para a artilharia pesada,  de uma empresa israelense,
mas a negociação  foi suspensa após um impasse diplomático.
O momento de polarização política vivido pelo Brasil desde 2009 criou um novo movimento jornalístico: a pós-verdade. É uma atualização de um velho ditado corrente na imprensa que diz:

— Não deixe que a realidade fique entre você e uma grande manchete.



Por Pedro Paulo Rezende


Claro, era uma brincadeira, mas deixou de ser.

A pós-verdade e o excesso de criatividade viraram armas dos jornalistas de direita. A maioria deles, aliás, já abusava de fake news desde a campanha eleitoral de 2018. Por outro lado, os militantes de esquerda atuam nos fóruns de WhatsApp pedindo ações mais contundentes e completamente fora da realidade contra o Ocidente, como o corte de relações diplomáticas com Israel e os Estados Unidos.

Podemos analisar isto na campanha jornalística para tentar reverter a decisão do governo de congelar o processo de aquisição pelo Comando do Exército de 36 obuseiros de 155 mm autopropulsados sobre rodas (Programa VBCOAP 155 SR) — vencido pela empresa israelense ELBIT, que ofereceu o ATMOS em uma versão específica para o Brasil. O motivo para a decisão é que as relações entre Brasil e o Estado de Israel nunca estiveram em um patamar tão baixo.

Antes de tomar a decisão, o presidente da República, Luíz Inácio Lula da Silva, ouviu o ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, e o assessor especial de Assuntos Internacionais (e ex-ministro da Defesa), embaixador Celso Amorim. É preciso ressaltar que ambos fazem uma distinção entre o governo do Estado judeu, hoje nas mãos de Benjamin (Bibi) Netanyahu — um radical supremacista —, e o país. Por isto, as relações diplomáticas com Israel não foram cortadas.

O congelamento da licitação, decidido depois de várias ações hostis do governo de Israel, não chega a prejudicar o programa do Comando do Exército de forma irremediável. Os termos do contrato preveem o envio de duas unidades para testes nas condições brasileiras antes de se firmar o documento definitivo. Caso as relações não se normalizem ainda haveria a possibilidade de se contratar, em análise pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o segundo colocado — o Zuzana, da empresa eslovaca Excalibur.

Este quadro inspirou um jornalista de direita (condenado por fake news) para lançar uma pós-verdade: as Forças Armadas nacionais irão retirar todos os equipamentos comprados de empresas israelenses de seus navios, viaturas e aviões para substituí-los por equipamentos chineses e russos, o que paralisaria Marinha, Exército e Aeronáutica. Ele se aproveitou de um fato real para, com criatividade, lançar uma fake news. O comandante do Exército, general de exército Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, irá visitar a República Popular da China onde poderá assinar acordos de cooperação entre os dois países.

Há uma grande distância entre os dois pontos, o que apenas demonstra o grau de loucura causado pela radicalização política do país.

Crise

Não faltaram artigos contrários ao presidente Luíz Inácio Lula da Silva quando ele denunciou, em fevereiro, o massacre da população civil em Gaza pelas Forças de Defesa de Israel. A declaração foi dura e comparou os bombardeios israelenses às ações de Hitler contra os judeus. Na época, os meios de comunicação nacionais classificaram a fala como um apoio velado ao terrorismo e ignoraram as contínuas declarações anteriores em que ele responsabilizou o Hamas pelas 1.280 mortes de civis no ataque cometido em território israelense no dia 8 de outubro de 2023.

Em resposta, o ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, impôs um constrangimento ao então embaixador brasileiro, Frederico Meyer. Em lugar de uma reprimenda fechada, como é comum na diplomacia, escolheu o Museu do Holocausto, em Jerusalém, como palco. O evento foi público, o que contraria as regras internacionais. O chanceler israelense ainda declarou o presidente Lula “persona non grata”.

A reação internacional mostrou quem estava certo. Na Organização das Nações Unidas (ONU), a maioria dos países se alinhou com a posição brasileira, que reconhece a existência da Autoridade Palestina como governo legítimo da Cisjordânia e de Gaza e considera as ações de Israel em Gaza como crime de guerra. O Tribunal Penal Internacional (TPI) condenou Bibi Netanyahu à prisão, junto com quase todo o gabinete de governo formado pela coalizão de direita israelense.

Militontos

Para a direita radical, os interesses de Brasil e Israel se confundem. Os radicais conservadores gostariam que o Ministério das Relações Exteriores endossasse in totum as ações do primeiro-ministro do Estado judeu, Bibi Netanyahu, que determinam a eliminação de civis por ataques aéreos indiscriminados. Para esta turma, o presidente Luíz Inácio Lula da Silva não poderia denunciar o genocídio de 50 mil palestinos (26 mil deles crianças) e deveria seguir cegamente as determinações de Telavive (não reconhecemos Jerusalém como capital).

É bom lembrar que boa parte dos militontos da direita brasileira é formada por religiosos neopentecostais que acreditam ser o Estado de Israel a concretização de profecias bíblicas que afirmam que o Terceiro Templo será reconstruído e servirá de palco para a nova vinda do Messias. A segunda parte do texto, que não é canônico (surgiu nos Estados Unidos ao final do século 19), mas é amplamente aceito pelas Assembleias de Deus, normalmente não é citada: o templo será destruído e a maioria dos judeus será exterminada em uma guerra onde a Cristandade vencerá e o restante da população hebraica se converterá a Cristo.

O grau de loucura dos militontos vai mais além e chega ao cúmulo de afirmar que o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin (conservador e ligado à Igreja Ortodoxa Russa) é um representante do comunismo internacional e que a República Popular da China quer colonizar o Brasil.

É preciso ressaltar que a “militôncia” de esquerda não fica muito atrás. Em um fórum de discussão no WhatsApp, um participante afirmou que a posição neutra do presidente Luís Inácio Lula da Silva sobre as eleições da Venezuela deveria resultar na retirada do Brasil do BRICS Plus, como se fosse possível expulsar do bloco um membro fundador. Outra bobagem comum é a teoria da conspiração de que o atual governo estaria prestes a assinar um acordo para integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e se afastaria da China, nosso maior mercado, e da Rússia.

Até a queda no banheiro do presidente Lula ganhou uma versão conspiratória: a de que ele fingiu o acidente para não participar diretamente da Cúpula de Kazan que reunirá os países do BRICS. É normal nestes casos que o paciente fique, no mínimo, 48 horas em observação. Além disto, o avião presidencial sofreu uma pane e se encontra em reparos na Cidade do México. O substituto fabricado pela Embraer possui uma autonomia inferior e exigiria mais escalas.

Em função dos dois grupos, criei uma versão atualizada de O samba do crioulo doido, de Stanislaw Ponte Preta: O funk do militonto mentalmente perturbado. Precisamos nos afastar destas visões para não perdermos a sanidade.

A verdade

Em qualquer país que se preze, a diplomacia está acima das autoridades militares. É preciso lembrar que foi o governo israelense que levantou a voz de maneira desproporcional e, além disto, em represália, dificultou a saída de cidadãos brasileiros de Gaza. Para o Itamaraty, fica difícil fazer negócios com um vendedor que dá caneladas por baixo da mesa.

Este histórico foi ignorado pelo Comando do Exército ao escolher o ATMOS proposto pela empresa israelense Elbit como vencedor da concorrência.

O ministro da Defesa, José Múcio, ignorou este ponto e saiu a campo para tentar reverter a decisão do presidente da República. Além disto, criticou o Itamaraty por impedir a venda de material excedente do Exército Brasileiro para a República Federal da Alemanha (que seria repassado para a Ucrânia, que está em guerra com a Federação Russa). Os diplomatas da Divisão de Produtos de Defesa (DIPROD) — junto com os técnicos da Secretaria de Produtos de Defesa (SEPROD) do Ministério da Defesa — impediram o negócio. Afinal de contas a neutralidade absoluta em conflitos é uma das bases da política externa nacional desde os tempos de José Maria Paranhos Jr., o Barão do Rio Branco.

O ministro José Múcio disse que a recusa era ideológica. Alegou que o negócio, que envolvia a venda de 60 mil projéteis antiaéreos de 35 mm ao preço de US$ 20 milhões, foi negado porque prejudicaria a compra de fertilizantes e diesel da Rússia. No entanto, ele se esqueceu de mencionar que o Itamaraty negou uma proposta de Moscou para recomprar as doze células de helicópteros Mil Mi-35 (de fabricação russa) encostados pela Força Aérea Brasileira, por US$ 25 milhões a unidade.

Hoje, a diplomacia israelense está sob o controle de colonos que ocupam ilegalmente terras atribuídas pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao futuro Estado Palestino. Para sobreviver politicamente, Bibi Netanyahu (indiciado por corrupção) necessita ampliar conflitos, o que explica os ataques ao Irã, ao Líbano e à Síria. O primeiro-ministro israelense se apoia em uma base parlamentar formada por defensores do Grande Israel, que incluiria a limpeza étnica em Gaza e na Cisjordânia. É uma tragédia de grandes proporções e a posição do governo brasileiro se justifica e está acima da ideologia.