Do Opera Mundi
Vinte e seis anos após o fim da ditadura militar no Brasil (1964-1985), centenas de vítimas da repressão recorreram à justiça para processar ex-agentes do regime ou para apenas saber onde estão os restos de desaparecidos. O gaúcho João Augusto da Rosa, inspetor aposentado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), decidiu percorrer o caminho contrário e moveu um processo contra um jornalista, testemunha ocular de um crime cometido por ele e colegas 33 anos atrás.
Rosa, que atuava sob o codinome "Irno", acusa Luiz Cláudio Cunha, autor do livro Operação Condor: O Sequestro dos Uruguaios, de ter cometido o crime de injúria – "atribuir a alguém qualidade negativa, que ofenda sua honra, dignidade ou decoro". Nesta quarta-feira (25/05), porém, a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou pagamento de indenização por danos morais exigido pelo ex-agente do Dops.
Para Rosa, a injúria consta nas 450 páginas do livro de Cunha: "Nem parecia um policial. Tinha a cara e o focinho de um burocrata medíocre e exótico de algum escritório infecto de contabilidade da periferia", escreveu o jornalista em um dos capítulos.
Ex-chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, Cunha foi testemunha do sequestro de dois militantes de esquerda uruguaios, Lílian Celiberti, Universindo Díaz, e de seus filhos, crianças na época. O livro-reportagem relata detalhes do crime, cometido em 1978, em Porto Alegre, no âmbito da Operação Condor – uma aliança política clandestina de auxílio mútuo entre as ditaduras militares do Cone Sul nos anos de 1970 e 1980.
O processo
Rosa abriu a ação indenizatória em 2009 contra o jornalista e a Editora L&PM, um ano após o lançamento da obra. O pedido foi negado em primeira instância. A juíza Cláudia Maria Hardt, da 18ª Vara Cível do Foro de Porto Alegre, avaliou como improcedente a demanda. Ela definiu na época o conteúdo do livro como um "triste episódio", um "relato pertencente a um tempo [que foi] 'página infeliz da nossa história', nas palavras do próprio Chico Buarque".
Insatisfeito, Rosa recorreu, argumentando que a publicação utiliza "palavreado acusatório e ofensivo", o que levou a população a acreditar que ele era de fato um criminoso. Ele reclamou também de fotos publicadas sem sua autorização.
Os detalhes do crime, publicados na obra, não são inéditos. O livro foi feito com base em uma série de reportagens que rendeu à Veja, em 1979, os principais troféus de jornalismo do país, incluindo o Grande Prêmio Esso. A série ganhou na categoria de livro-reportagem os dois principais prêmios literários brasileiros – o Jabuti e o Vladimir Herzog – além de Menção Honrosa do prêmio Casa de Las Américas, de Cuba.
Curiosamente, Rosa não protestou contra as reportagens, que foram publicadas durante 86 semanas, entre novembro de 1978 e junho de 1980. E o texto da época já o mencionava como cúmplice do sequestro.
Este é justamente um dos argumentos que a defesa utilizou: o livro é baseado em reportagens já publicadas, portanto nada de novo a respeito do ex-agente foi divulgado, inclusive as fotos. E ressalta que a publicação se limita a narrar fatos ocorridos.
A relatora da apelação, a desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi, concluiu que não houve intenção do escritor de macular a reputação de Rosa, apesar de satirizar e criticar seu modo de agir. Marilene retomou o texto escrito pela juíza Cláudia Hardt na sentença final e concordou que o objetivo da obra foi claro: "expor publicamente uma pesquisa sobre os fatos ocorridos, já que na época tais informações não poderiam ser publicamente difundidas sem repressão". Atualmente, segundo ela, deve haver liberdade de manifestação.
"Não se tolera a possibilidade de limitar a criatividade e a liberdade de escritores que, como o autor, dissertam sobre tema delicado e ainda marcado na historiografia brasileira, sob pena de estarmos igualmente constrangendo o espírito investigativo dos repórteres e de encobrirmos informações necessárias para a fundamentação de nossa consciência crítica", escreveu Cláudia, na sentença final, citada pelo Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro.
A história
Os uruguaios foram sequestrados em Porto Alegre e entregues na fronteira aos agentes da repressão uruguaia. Um imprevisto, porém, impediu que a operação fosse concluída com êxito. Um telefonema anônimo para a redação da revista levou Cunha e o fotógrafo João Batista Scalco a um apartamento no bairro Menino Deus, onde o casal estava morando. "Está acontecendo um sequestro", disse o informante, sem identificar-se.
Quando os dois jornalistas chegaram, Lílian e Universindo já estavam nas mãos dos agentes, que aguardavam para capturar Hugo Cores, militante chefe do grupo. Cunha conta que Lílian abriu a porta, mas não conseguiu falar nada. Dois homens que estavam no interior do apartamento apareceram, com armas na mão. Um colocou a pistola na cabeça de Cunha e o outro fez o mesmo com o fotógrafo. Os jornalistas se identificaram e depois de breve interrogatório foram liberados, sob a condição de silêncio total.
Em poucos dias, os dois uruguaios e as crianças chegaram a Montevidéu, acompanhados de agentes da ditadura no Uruguai (1973-1985). Tanto Lílian como Universindo sobreviveram à repressão e seus nomes são citados com frequência na imprensa sul-americana.
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