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terça-feira, 22 de outubro de 2024

Jornalismo: Brasil, Israel e a pós-verdade


O Exército Brasileiro negociava a compra de 36 unidades de um tipo de
blindado voltado para a artilharia pesada,  de uma empresa israelense,
mas a negociação  foi suspensa após um impasse diplomático.
O momento de polarização política vivido pelo Brasil desde 2009 criou um novo movimento jornalístico: a pós-verdade. É uma atualização de um velho ditado corrente na imprensa que diz:

— Não deixe que a realidade fique entre você e uma grande manchete.



Por Pedro Paulo Rezende


Claro, era uma brincadeira, mas deixou de ser.

A pós-verdade e o excesso de criatividade viraram armas dos jornalistas de direita. A maioria deles, aliás, já abusava de fake news desde a campanha eleitoral de 2018. Por outro lado, os militantes de esquerda atuam nos fóruns de WhatsApp pedindo ações mais contundentes e completamente fora da realidade contra o Ocidente, como o corte de relações diplomáticas com Israel e os Estados Unidos.

Podemos analisar isto na campanha jornalística para tentar reverter a decisão do governo de congelar o processo de aquisição pelo Comando do Exército de 36 obuseiros de 155 mm autopropulsados sobre rodas (Programa VBCOAP 155 SR) — vencido pela empresa israelense ELBIT, que ofereceu o ATMOS em uma versão específica para o Brasil. O motivo para a decisão é que as relações entre Brasil e o Estado de Israel nunca estiveram em um patamar tão baixo.

Antes de tomar a decisão, o presidente da República, Luíz Inácio Lula da Silva, ouviu o ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, e o assessor especial de Assuntos Internacionais (e ex-ministro da Defesa), embaixador Celso Amorim. É preciso ressaltar que ambos fazem uma distinção entre o governo do Estado judeu, hoje nas mãos de Benjamin (Bibi) Netanyahu — um radical supremacista —, e o país. Por isto, as relações diplomáticas com Israel não foram cortadas.

O congelamento da licitação, decidido depois de várias ações hostis do governo de Israel, não chega a prejudicar o programa do Comando do Exército de forma irremediável. Os termos do contrato preveem o envio de duas unidades para testes nas condições brasileiras antes de se firmar o documento definitivo. Caso as relações não se normalizem ainda haveria a possibilidade de se contratar, em análise pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o segundo colocado — o Zuzana, da empresa eslovaca Excalibur.

Este quadro inspirou um jornalista de direita (condenado por fake news) para lançar uma pós-verdade: as Forças Armadas nacionais irão retirar todos os equipamentos comprados de empresas israelenses de seus navios, viaturas e aviões para substituí-los por equipamentos chineses e russos, o que paralisaria Marinha, Exército e Aeronáutica. Ele se aproveitou de um fato real para, com criatividade, lançar uma fake news. O comandante do Exército, general de exército Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, irá visitar a República Popular da China onde poderá assinar acordos de cooperação entre os dois países.

Há uma grande distância entre os dois pontos, o que apenas demonstra o grau de loucura causado pela radicalização política do país.

Crise

Não faltaram artigos contrários ao presidente Luíz Inácio Lula da Silva quando ele denunciou, em fevereiro, o massacre da população civil em Gaza pelas Forças de Defesa de Israel. A declaração foi dura e comparou os bombardeios israelenses às ações de Hitler contra os judeus. Na época, os meios de comunicação nacionais classificaram a fala como um apoio velado ao terrorismo e ignoraram as contínuas declarações anteriores em que ele responsabilizou o Hamas pelas 1.280 mortes de civis no ataque cometido em território israelense no dia 8 de outubro de 2023.

Em resposta, o ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, impôs um constrangimento ao então embaixador brasileiro, Frederico Meyer. Em lugar de uma reprimenda fechada, como é comum na diplomacia, escolheu o Museu do Holocausto, em Jerusalém, como palco. O evento foi público, o que contraria as regras internacionais. O chanceler israelense ainda declarou o presidente Lula “persona non grata”.

A reação internacional mostrou quem estava certo. Na Organização das Nações Unidas (ONU), a maioria dos países se alinhou com a posição brasileira, que reconhece a existência da Autoridade Palestina como governo legítimo da Cisjordânia e de Gaza e considera as ações de Israel em Gaza como crime de guerra. O Tribunal Penal Internacional (TPI) condenou Bibi Netanyahu à prisão, junto com quase todo o gabinete de governo formado pela coalizão de direita israelense.

Militontos

Para a direita radical, os interesses de Brasil e Israel se confundem. Os radicais conservadores gostariam que o Ministério das Relações Exteriores endossasse in totum as ações do primeiro-ministro do Estado judeu, Bibi Netanyahu, que determinam a eliminação de civis por ataques aéreos indiscriminados. Para esta turma, o presidente Luíz Inácio Lula da Silva não poderia denunciar o genocídio de 50 mil palestinos (26 mil deles crianças) e deveria seguir cegamente as determinações de Telavive (não reconhecemos Jerusalém como capital).

É bom lembrar que boa parte dos militontos da direita brasileira é formada por religiosos neopentecostais que acreditam ser o Estado de Israel a concretização de profecias bíblicas que afirmam que o Terceiro Templo será reconstruído e servirá de palco para a nova vinda do Messias. A segunda parte do texto, que não é canônico (surgiu nos Estados Unidos ao final do século 19), mas é amplamente aceito pelas Assembleias de Deus, normalmente não é citada: o templo será destruído e a maioria dos judeus será exterminada em uma guerra onde a Cristandade vencerá e o restante da população hebraica se converterá a Cristo.

O grau de loucura dos militontos vai mais além e chega ao cúmulo de afirmar que o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin (conservador e ligado à Igreja Ortodoxa Russa) é um representante do comunismo internacional e que a República Popular da China quer colonizar o Brasil.

É preciso ressaltar que a “militôncia” de esquerda não fica muito atrás. Em um fórum de discussão no WhatsApp, um participante afirmou que a posição neutra do presidente Luís Inácio Lula da Silva sobre as eleições da Venezuela deveria resultar na retirada do Brasil do BRICS Plus, como se fosse possível expulsar do bloco um membro fundador. Outra bobagem comum é a teoria da conspiração de que o atual governo estaria prestes a assinar um acordo para integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e se afastaria da China, nosso maior mercado, e da Rússia.

Até a queda no banheiro do presidente Lula ganhou uma versão conspiratória: a de que ele fingiu o acidente para não participar diretamente da Cúpula de Kazan que reunirá os países do BRICS. É normal nestes casos que o paciente fique, no mínimo, 48 horas em observação. Além disto, o avião presidencial sofreu uma pane e se encontra em reparos na Cidade do México. O substituto fabricado pela Embraer possui uma autonomia inferior e exigiria mais escalas.

Em função dos dois grupos, criei uma versão atualizada de O samba do crioulo doido, de Stanislaw Ponte Preta: O funk do militonto mentalmente perturbado. Precisamos nos afastar destas visões para não perdermos a sanidade.

A verdade

Em qualquer país que se preze, a diplomacia está acima das autoridades militares. É preciso lembrar que foi o governo israelense que levantou a voz de maneira desproporcional e, além disto, em represália, dificultou a saída de cidadãos brasileiros de Gaza. Para o Itamaraty, fica difícil fazer negócios com um vendedor que dá caneladas por baixo da mesa.

Este histórico foi ignorado pelo Comando do Exército ao escolher o ATMOS proposto pela empresa israelense Elbit como vencedor da concorrência.

O ministro da Defesa, José Múcio, ignorou este ponto e saiu a campo para tentar reverter a decisão do presidente da República. Além disto, criticou o Itamaraty por impedir a venda de material excedente do Exército Brasileiro para a República Federal da Alemanha (que seria repassado para a Ucrânia, que está em guerra com a Federação Russa). Os diplomatas da Divisão de Produtos de Defesa (DIPROD) — junto com os técnicos da Secretaria de Produtos de Defesa (SEPROD) do Ministério da Defesa — impediram o negócio. Afinal de contas a neutralidade absoluta em conflitos é uma das bases da política externa nacional desde os tempos de José Maria Paranhos Jr., o Barão do Rio Branco.

O ministro José Múcio disse que a recusa era ideológica. Alegou que o negócio, que envolvia a venda de 60 mil projéteis antiaéreos de 35 mm ao preço de US$ 20 milhões, foi negado porque prejudicaria a compra de fertilizantes e diesel da Rússia. No entanto, ele se esqueceu de mencionar que o Itamaraty negou uma proposta de Moscou para recomprar as doze células de helicópteros Mil Mi-35 (de fabricação russa) encostados pela Força Aérea Brasileira, por US$ 25 milhões a unidade.

Hoje, a diplomacia israelense está sob o controle de colonos que ocupam ilegalmente terras atribuídas pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao futuro Estado Palestino. Para sobreviver politicamente, Bibi Netanyahu (indiciado por corrupção) necessita ampliar conflitos, o que explica os ataques ao Irã, ao Líbano e à Síria. O primeiro-ministro israelense se apoia em uma base parlamentar formada por defensores do Grande Israel, que incluiria a limpeza étnica em Gaza e na Cisjordânia. É uma tragédia de grandes proporções e a posição do governo brasileiro se justifica e está acima da ideologia.

4 comentários:

Anônimo disse...

Maravilha de texto Parabéns

Chico Sant'Anna disse...

Em nome do autor eu agradeço e peço pra vc compartilhar entre os seus.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Luiz Müller disse...

Muito bom texto.