O Exército Brasileiro negociava a compra de 36 unidades de um tipo de blindado voltado para a artilharia pesada, de uma empresa israelense, mas a negociação foi suspensa após um impasse diplomático. |
O momento de polarização política vivido pelo Brasil desde
2009 criou um novo movimento jornalístico: a pós-verdade. É uma atualização de
um velho ditado corrente na imprensa que diz:
— Não deixe que a realidade fique entre você e uma grande
manchete.
Por Pedro Paulo Rezende
Claro, era uma brincadeira, mas deixou de ser.
A pós-verdade
e o excesso de criatividade viraram armas dos jornalistas de direita. A maioria
deles, aliás, já abusava de fake news desde a campanha eleitoral de 2018. Por
outro lado, os militantes de esquerda atuam nos fóruns de WhatsApp pedindo
ações mais contundentes e completamente fora da realidade contra o Ocidente,
como o corte de relações diplomáticas com Israel e os Estados Unidos.
Podemos analisar isto na campanha jornalística para tentar
reverter a decisão do governo de congelar o processo de aquisição pelo Comando
do Exército de 36 obuseiros de 155 mm autopropulsados sobre rodas (Programa
VBCOAP 155 SR) — vencido pela empresa israelense ELBIT, que ofereceu o ATMOS em
uma versão específica para o Brasil. O motivo para a decisão é que as relações
entre Brasil e o Estado de Israel nunca estiveram em um patamar tão baixo.
Antes de tomar a decisão, o presidente da República, Luíz
Inácio Lula da Silva, ouviu o ministro das Relações Exteriores, embaixador
Mauro Vieira, e o assessor especial de Assuntos Internacionais (e ex-ministro
da Defesa), embaixador Celso Amorim. É preciso ressaltar que ambos fazem uma
distinção entre o governo do Estado judeu, hoje nas mãos de Benjamin (Bibi)
Netanyahu — um radical supremacista —, e o país. Por isto, as relações
diplomáticas com Israel não foram cortadas.
O congelamento da licitação, decidido depois de várias ações
hostis do governo de Israel, não chega a prejudicar o programa do Comando do
Exército de forma irremediável. Os termos do contrato preveem o envio de duas
unidades para testes nas condições brasileiras antes de se firmar o documento
definitivo. Caso as relações não se normalizem ainda haveria a possibilidade de
se contratar, em análise pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o segundo
colocado — o Zuzana, da empresa eslovaca Excalibur.
Este quadro inspirou um jornalista de direita (condenado por
fake news) para lançar uma pós-verdade: as Forças Armadas nacionais irão
retirar todos os equipamentos comprados de empresas israelenses de seus navios,
viaturas e aviões para substituí-los por equipamentos chineses e russos, o que
paralisaria Marinha, Exército e Aeronáutica. Ele se aproveitou de um fato real
para, com criatividade, lançar uma fake news. O comandante do Exército, general
de exército Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, irá visitar a República Popular da
China onde poderá assinar acordos de cooperação entre os dois países.
Há uma grande distância entre os dois pontos, o que apenas
demonstra o grau de loucura causado pela radicalização política do país.
Crise
Não faltaram artigos contrários ao presidente Luíz Inácio
Lula da Silva quando ele denunciou, em fevereiro, o massacre da população civil
em Gaza pelas Forças de Defesa de Israel. A declaração foi dura e comparou os
bombardeios israelenses às ações de Hitler contra os judeus. Na época, os meios
de comunicação nacionais classificaram a fala como um apoio velado ao
terrorismo e ignoraram as contínuas declarações anteriores em que ele
responsabilizou o Hamas pelas 1.280 mortes de civis no ataque cometido em
território israelense no dia 8 de outubro de 2023.
Em resposta, o ministro das Relações Exteriores de Israel,
Israel Katz, impôs um constrangimento ao então embaixador brasileiro, Frederico
Meyer. Em lugar de uma reprimenda fechada, como é comum na diplomacia, escolheu
o Museu do Holocausto, em Jerusalém, como palco. O evento foi público, o que
contraria as regras internacionais. O chanceler israelense ainda declarou o
presidente Lula “persona non grata”.
A reação internacional mostrou quem estava certo. Na
Organização das Nações Unidas (ONU), a maioria dos países se alinhou com a
posição brasileira, que reconhece a existência da Autoridade Palestina como
governo legítimo da Cisjordânia e de Gaza e considera as ações de Israel em
Gaza como crime de guerra. O Tribunal Penal Internacional (TPI) condenou Bibi
Netanyahu à prisão, junto com quase todo o gabinete de governo formado pela
coalizão de direita israelense.
Militontos
Para a direita radical, os interesses de Brasil e Israel se
confundem. Os radicais conservadores gostariam que o Ministério das Relações
Exteriores endossasse in totum as ações do primeiro-ministro do Estado judeu,
Bibi Netanyahu, que determinam a eliminação de civis por ataques aéreos
indiscriminados. Para esta turma, o presidente Luíz Inácio Lula da Silva não
poderia denunciar o genocídio de 50 mil palestinos (26 mil deles crianças) e
deveria seguir cegamente as determinações de Telavive (não reconhecemos
Jerusalém como capital).
É bom lembrar que boa parte dos militontos da direita
brasileira é formada por religiosos neopentecostais que acreditam ser o Estado
de Israel a concretização de profecias bíblicas que afirmam que o Terceiro
Templo será reconstruído e servirá de palco para a nova vinda do Messias. A
segunda parte do texto, que não é canônico (surgiu nos Estados Unidos ao final
do século 19), mas é amplamente aceito pelas Assembleias de Deus, normalmente
não é citada: o templo será destruído e a maioria dos judeus será exterminada
em uma guerra onde a Cristandade vencerá e o restante da população hebraica se
converterá a Cristo.
O grau de loucura dos militontos vai mais além e chega ao
cúmulo de afirmar que o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin
(conservador e ligado à Igreja Ortodoxa Russa) é um representante do comunismo
internacional e que a República Popular da China quer colonizar o Brasil.
É preciso ressaltar que a “militôncia” de esquerda não fica
muito atrás. Em um fórum de discussão no WhatsApp, um participante afirmou que
a posição neutra do presidente Luís Inácio Lula da Silva sobre as eleições da
Venezuela deveria resultar na retirada do Brasil do BRICS Plus, como se fosse
possível expulsar do bloco um membro fundador. Outra bobagem comum é a teoria
da conspiração de que o atual governo estaria prestes a assinar um acordo para
integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e se afastaria da
China, nosso maior mercado, e da Rússia.
Até a queda no banheiro do presidente Lula ganhou uma versão
conspiratória: a de que ele fingiu o acidente para não participar diretamente
da Cúpula de Kazan que reunirá os países do BRICS. É normal nestes casos que o
paciente fique, no mínimo, 48 horas em observação. Além disto, o avião
presidencial sofreu uma pane e se encontra em reparos na Cidade do México. O
substituto fabricado pela Embraer possui uma autonomia inferior e exigiria mais
escalas.
Em função dos dois grupos, criei uma versão atualizada de O samba do crioulo doido, de Stanislaw
Ponte Preta: O funk do militonto
mentalmente perturbado. Precisamos nos afastar destas visões para não
perdermos a sanidade.
A verdade
Em qualquer país que se preze, a diplomacia está acima das
autoridades militares. É preciso lembrar que foi o governo israelense que
levantou a voz de maneira desproporcional e, além disto, em represália,
dificultou a saída de cidadãos brasileiros de Gaza. Para o Itamaraty, fica
difícil fazer negócios com um vendedor que dá caneladas por baixo da mesa.
Este histórico foi ignorado pelo Comando do Exército ao
escolher o ATMOS proposto pela empresa israelense Elbit como vencedor da
concorrência.
O ministro da Defesa, José Múcio, ignorou este ponto e saiu
a campo para tentar reverter a decisão do presidente da República. Além disto,
criticou o Itamaraty por impedir a venda de material excedente do Exército
Brasileiro para a República Federal da Alemanha (que seria repassado para a
Ucrânia, que está em guerra com a Federação Russa). Os diplomatas da Divisão de
Produtos de Defesa (DIPROD) — junto com os técnicos da Secretaria de Produtos
de Defesa (SEPROD) do Ministério da Defesa — impediram o negócio. Afinal de
contas a neutralidade absoluta em conflitos é uma das bases da política externa
nacional desde os tempos de José Maria Paranhos Jr., o Barão do Rio Branco.
O ministro José Múcio disse que a recusa era ideológica.
Alegou que o negócio, que envolvia a venda de 60 mil projéteis antiaéreos de 35
mm ao preço de US$ 20 milhões, foi negado porque prejudicaria a compra de
fertilizantes e diesel da Rússia. No entanto, ele se esqueceu de mencionar que
o Itamaraty negou uma proposta de Moscou para recomprar as doze células de
helicópteros Mil Mi-35 (de fabricação russa) encostados pela Força Aérea
Brasileira, por US$ 25 milhões a unidade.
Hoje, a diplomacia israelense está sob o controle de colonos
que ocupam ilegalmente terras atribuídas pela Organização das Nações Unidas
(ONU) ao futuro Estado Palestino. Para sobreviver politicamente, Bibi Netanyahu
(indiciado por corrupção) necessita ampliar conflitos, o que explica os ataques
ao Irã, ao Líbano e à Síria. O primeiro-ministro israelense se apoia em uma
base parlamentar formada por defensores do Grande Israel, que incluiria a
limpeza étnica em Gaza e na Cisjordânia. É uma tragédia de grandes proporções e
a posição do governo brasileiro se justifica e está acima da ideologia.