"Quando o “eu” se transforma em ativo comercial, o risco não é apenas a alienação individual — é a desfiguração do espaço público e da democracia. Regular as plataformas é reumanizar o debate. É restituir ao cidadão a dignidade da palavra. E à política, o compromisso com o bem comum."
Por Israel Fernando de C. Bayma*
Bem, pode-se até dizer que a
Internet, desde os seus primórdios, surgiu como tecnologia para conexão de
pessoas e com total liberdade de expressão, sem nenhum tipo de controle.
Podemos ser categóricos: as redes sociais digitais, não. Já surgiram em plataformas
de conexão e controle pelos seus proprietários e, sob essa fachada, passaram a operar como máquinas de despojo
da subjetividade humana. Em vez de simplesmente promoverem a comunicação, elas
convertem emoções, desejos e a intimidade do indivíduo em mercadorias digitais.
Nas redes sociais prevalece a banalização da intimidade com
um grau extremo de mercantilização da vida íntima no
capitalismo contemporâneo. Há uma lógica de
mercantilização que transforma a vida íntima em commodity. E, nesse
contexto, não é o corpo que está à venda, mas o tempo psíquico, o afeto,
o desejo
de reconhecimento e a autoimagem performada.
As explicações para o
que ocorre podem ser encontradas tanto em Marx como em formas mais ampliadas de
pensadores como Zuboff, Fuchs, Bauman e Han.
Em A Comunicação Social Eletrônica na Constituição de
1988, defendi que as redes sociais digitais, por sua
natureza de difusão pública e alcance massivo, devem ser compreendidas como
meios de comunicação social eletrônica — e, por isso, sujeitas ao regime
jurídico de regulação previsto no art. 222, § 3.º, da Constituição de 1988. Esse
dispositivo, embora positivado na Constituição, é uma norma de eficácia limitada, pois depende de lei específica
regulamentadora para fixação dos parâmetros de eficácia jurídica –
aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade normativa. Isso
justifica a insistência para que seja elaborada uma norma regulamentadora das
redes sociais digitais.
Enquanto isso, em linha
complementar, em Que Tal Retirar o Véu dos Algoritmos das
Plataformas Digitais?
, defendi que os algoritmos, ao operarem como filtros invisíveis da
informação, estruturam o debate público e têm interferido na formação da
opinião e, por isso, também deveriam estar sujeitos a princípios
constitucionais como transparência, pluralismo e controle democrático.
Há mais de 15 anos, em uma
entrevista concedida à revista do Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação (FNDC), manifestei o meu receio de que a Internet viesse a ser
dominada pelas grandes corporações multinacionais.
Hoje estamos em um cenário pior do
que ter a Internet controlada pelas corporações. Há uma constatação mais ampla:
nas redes sociais, a subjetividade humana está convertida em mercadoria. A vida
íntima, os afetos, o desejo de reconhecimento e até mesmo o ócio das pessoas
estão sendo empacotados nas chamadas redes sociais em formatos digitalmente
comercializáveis.
Shoshana
Zuboff definiu
tudo isso como capitalismo de vigilância, conceito
desenvolvido inicialmente em seu artigo “Big other: surveillance capitalism and
the prospects of an information civilization” (Journal of Information Technology, 2015), e
posteriormente aprofundado no livro The
Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New
Frontier of Power (2021).
Para mim, é uma alienação
contemporânea que pode ser compreendida também à luz de Marx, em Manuscritos Econômico-Filosóficos
e O Capital – Livro 1,
onde o pensador alemão denuncia a perda do “ser genérico” do trabalhador sob o
regime da mais-valia. Nesse ambiente digital das redes sociais não apenas o
conteúdo é alienado: o próprio sujeito é transformado em capital simbólico e
emocional, explorado pelas plataformas das redes sociais que lucram com sua
atenção, seu afeto e seus dados pessoais.
Já Christian Fuchs denomina esse
fenômeno play labour (trabalho-lazer) - “expressão de um novo
espírito/ideologia do capitalismo” - em sua obra Social Media: A Critical Introduction (2014),
explicando que o trabalho invisível da interação nas redes, embora pareça
lazer, alimenta um sistema que extrai valor sem remuneração.
As “liquidezes” de Zygmunt Bauman, em
Vida para Consumo (2008) e Amor Líquido (2008),
também observam que, na modernidade líquida, a identidade se dissolve em
performances adaptáveis. “Os membros da sociedade de consumidores são eles
próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de
consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade”, afirma Bauman. São as
“comunidades de ocasião” construídas em torno de eventos, lives, influencers.
Byung-Chul Han radicaliza esse ponto
em Psicopolítica (2014) e A Sociedade do Cansaço:
o
neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2015). O sujeito de desempenho tornou-se explorador e
explorado de si mesmo. “É quantificável, mensurável e controlável.” Vive sob a
coação de maximizar sua presença, sua imagem, seu engajamento.
Hoje, nas redes sociais tudo é
espetáculo, a política virou meme, a dor virou conteúdo, e a existência virou
interface. A direita brasileira – que continua reacionária - compreendeu isso.
Aprendeu a operar nesse ecossistema emocional, onde o carisma vale mais que o
conteúdo, e a viralidade mais que a coerência ou a verdade. Onde a lógica opaca
e mercantilizada tem servido como canal de desinformação, radicalização e
manipulação política, como nos episódios envolvendo o apoio indireto que dão ao
atual presidente norte-americano. Há uma instrumentalização do espaço digital
das redes sociais incompatível com uma regulação verdadeiramente democrática.
Por outro lado, até recentemente, a
esquerda brasileira parecia estar presa a uma lógica discursiva racional, falava,
mas não engajava. Sabia, mas ainda pouco tinha conseguido reverberar. No
entanto, hoje, os dados são mais claros: a
imposição estapafúrdia de uma sobretaxa do presidente norte-americano contra as
exportações brasileiras detonou uma reação em cadeia. O episódio não apenas
amplificou exponencialmente a presença da esquerda nas redes sociais, como
ecoou globalmente – com cobertura crítica nos grandes jornalões nacionais e
estrangeiros que destacaram o caráter predatório da medida e expuseram os interesses
da direita brasileira que a articularam.
Nas plataformas
das redes sociais, o crescimento de inserções positivas foi explosivo: menções
positivas à esquerda e ao Governo brasileiro dispararam, vinculando a crise
comercial ao projeto da direita mundial de desmonte soberano. Virou caso
emblemático de como uma ofensa econômica pode, quando bem contestada,
converter-se em capital político digital. Qual foi a diferença desta vez? A
esquerda soube transformar números frios – os bilhões de dólares em perdas – em
narrativa bem conduzida sobre defesa da soberania e da resistência do povo
brasileiro.
Pela primeira
vez em anos, nas redes sociais, a esquerda brasileira não apenas reagiu – mas
ditou os termos do debate, convertendo uma agressão política e econômica em
capital político digital.
Vejo que a regulação democrática das plataformas das redes sociais se torna
urgente. O ambiente informacional contemporâneo exige regras. Regras que
submetam os algoritmos à Constituição Federal de 1988, como propus em meus
trabalhos anteriores. Regras que impeçam que a liberdade de expressão seja
capturada por modelos de negócio que favorecem o ódio, o extremismo e a
manipulação. Regras de auditoria algorítmica, por exemplo. Precisamos resgatar
a fala como espaço de alteridade, a escuta como ato político, e a comunicação
como direito — não como mercadoria.
Quando o “eu” se transforma em ativo
comercial, o risco não é apenas a alienação individual — é a desfiguração do
espaço público e da democracia. Regular as plataformas é reumanizar o debate. É
restituir ao cidadão a dignidade da palavra. E à política, o compromisso com o
bem comum.
* Engenheiro eletrônico e advogado.