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sexta-feira, 11 de março de 2022

Nas lentes, a delicadeza e o grito da denúncia de Orlando Brito

 

Palácio do Planalto: Principal campo de atuação de Orlando Brito. Foto de Sergio Lima

Por Chico Sant’Anna

Comecei a trabalhar no jornalismo, ainda como estagiário, na Bloch Editores, uma casa onde o lead da notícia – a exemplo de O Cruzeiro - tinha que ser a grande foto. A sucursal de Brasília, onde escrevíamos para as revistas Manchete, Fatos & Fotos, Geográfica Universal, Amiga e tantas outras, era dirigida por um fotojornalista, Sérgio Ross. E foi pelas mãos dele e dos fotógrafos Cláudio Alves e Ronan Pimenta, que comecei a conhecer os coleguinhas. Embora profissional de texto, minhas primeiras amizades foi com o que havia de melhor no fotojornalismo: Dentre esses, Adão Nascimento, João Luiz ' Moreno de O Globo, Samuka, Kim-ir-Sen, Tadashi Nakagomi, Milton Guran, Freitinha, Moreira Mariz, a família Stuckert e é claro, Orlando Brito.

As mazelas sociais não escapavam à sagacidade do
olhar de Orlando Brito, como registrou André Dusek,
 em 1977, no interior de Goiás, quando cobriam
a situação de trabalhadores sem terra.
A amizade com Brito se desenvolveu mais intensamente, pois todos fins de semana íamos a Goiânia cobrir o Campeonato Brasileiro de Futebol e em algumas oportunidades o automobilismo. Eu, estagiário pela Manchete Esportiva, e ele, já craque de O Globo. A volta do Serra Dourada era no opalão amarelo que ele tinha, rebaixado, tala larga, farol de milha, bancos reclinados. Todo incrementado.


Brito era um profissional que não furtava ajudar os iniciantes, que dava as dicas, os amigos, mas não dispensava uma pegadinha. Certa vez no autódromo Ayrton Senna, de Goiânia, ele apareceu com um boné de uma das escuderias de stock car, dizendo que estavam distribuindo nos boxes. Me fez largar tudo, pra tentar ganhar um também, mas era pegadinha. Pegadinha que se repetiu em Manaus, quando videocassete vhs era o máximo do requinte. Na hora do retorno a Brasília, numa visita presidencial, ele espalhou que bastava dar o CPF a uma funcionária da Zona Franca, para ser agraciado com um aparelho. Um assessor de imprensa da presidência da República acreditou na história e quase cria um incidente político na Base Aérea de Manaus. Queria a todo custo o seu videocassete e não aceitava ser discriminado.

Pacote de Abril: Militares cercam o Congresso Nacional. Foto de Orlando Brito

Muito além das brincadeiras, das partidas de futebol de salão no Clube de Imprensa, Orlando Brito, marcou o fotojornalismo nacional. Se uma imagem fala mais do que mil palavras, Brito escreveu diversas bibliotecas inteiras. Com seu olhar astuto, jogando com as luzes, ou com a falta dela, construiu imagens que muitas novas gerações tentaram copiar. O seu tino jornalístico ia além das fotos. 
Atribui-se a ele, ainda no governo do general Ernesto Geisel, a subtração do projeto de Anistia, que o então ministro da Justiça, Petrônio Portela, costurava. O texto, diz a lenda, estava preso a uma almofada do sofá do gabinete de Portela e enquanto este concedia uma entrevista coletiva, Brito identificou a minuta e a fotografou inteiramente. Primeira página de O Globo, no dia seguinte. Tudo isso num tempo em que não existia as fotos digitais, muito menos câmeras de celulares. Era aquela parafernália imensa.

A busca da luz perfeita é o desafio de todos fotógrafos. Os ambiente sombrios
eram espaço para a criatividade de Orlando Brito. As siluetas de dois ícones da
divergência entre Arena e MDB, Magalhães Pinto e Ulisses Guimarães, demonstram
bem como era a sua técnica.

Se cada presidente teve seu fotógrafo pessoal, Orlando Brito, pode se dizer, fotografou a todos desde a década de 1970. O regime dos militares lhe rendeu belíssimas fotos – não sei se dores de cabeça também – mas José Sarney e Ulisses Guimarães parecem ter contado com um foco privilegiado por parte dele.

À comissão da Memória e da Verdade, do Sindicato dos Jornalistas do DF, da qual fui o secretário-geral, Brito confidenciou as mazelas que era fazer jornalismo no tempo da censura e do arbítrio. 

Com suas fotos, dava o recado claro, objetivo e corajoso. Manifestação pelo impeachment de Jair Bolsonaro em 10/08/2021. Foto de Orlando Brito

Um tempo em que a presença de censores nas redações era constante e que o material deveria ser previamente autorizado pelos prepostos da Ditadura. Um tempo em que os caros equipamentos eram confiscados ou danificados; em que era preciso esconder o rolo de filme para não tê-lo apreendido, em que o credenciamento prévio para a cobertura do Poder era submetido ao crivo do Serviço Nacional de Informação – SNI, coberto de perseguições políticas; e até a o chamado “pedir a cabeça”, quando o Poder exigia aos patrões que determinado profissionais não mais trabalhassem naquela empresa. Mesmo assim, como relatou Moreira Mariz, em relação ao protesto na Rampa do Planalto, na descida de João Figueiredo, era um tempo em que os profissionais “não engolia sapo. A gente reagia”.


DOCUMENTÁRIO DA TV SENADO SOBRE O PACOTE DE ABRIL NA VISÃO DE ORLANDO BRITO


Assembleias de trabalhadores sob  a vigilância
dos militares. Foto de Orlando Brito.
Esse é um tempo em que, em São Paulo, a temperatura começacava a esquentar no ABC com as manifestações dos metalúrgicos. Em Brasília, os jornalistas resgataram o seu sindicato local, tendo Carlos Castelo Branco encabeçado uma chapa que destituiu os amigos da ditadura, que comandavam o sindicato desde 1964. E Orlando Brito estava nesse grupo, que na segunda metade da década de 1970, assumiu na Capital Federal a tarefa de reorganizar a categoria, lutar contra à censura, organizar e valorizar um ofício que só em 1979 teria regulamentada sua profissão. Período em que Geisel baixou o Pacote de Abril, fechando o Congresso Nacional, e que em resposta os jornalistas de Brasília, criaram o Pacotão e pela principal avenida da cidade, a W.3, desfilaram pela contramão. E Brito e sua câmera estavam lá.

Os tempos atuais e já com mais de 70 anos, Orlando Brito não arrefeceu a sua objetiva. Pelo contrário, ao lado de Dida Sampaio, do Estadão, trouxeram à opinião pública todo o rancor que os militantes bolsonaristas propagam em suas manifestações, ao ponto de os dois serem alvos de agressão na Praça dos Três Poderes. Por uma ironia do destino, os dois partiram e com suas teles vão fotografar outras paragens.

O avançar do concreto sobre o verde de Brasília, distorcendo
 as premissas de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, foram  igualmente
 preocupações do fotojornalista de raízes candangas. Foto de Orlando Brito
Sensibilidade

Como pioneiro de primeira hora em Brasília – Brito gostava de mostrar uma foto quando ainda guri participou da Missa de Inauguração – Orlando Brito tinha um xodó pela cidade que o abrigou. Não foi só o palco do Poder que atraiu sua atenção. A singeleza dos ipês florescendo na cidade foi alvo de uma crônica sua – em texto e fotos – intitulada Pra não dizer que falei de flores. Suas lentes também operaram para denunciar o abandono do trato da Capital Federal, do avanço desenfreado da urbanização selvagem, da perda do verde para o cinza do concreto.

Até à próxima, Brito. Fique em paz. Foto acervo pessoal
Adjetivos certamente não serão suficientes para qualificá-lo. A palavra que me vem com força à mente, agora, é obrigado. 

Muito obrigado pelos ensinamentos, obrigado pela amizade, obrigado pela parceria,
obrigado pela caminhada simultânea pelo mundo do jornalismo da Capital Federal.

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