A multiartista Alice Marcone (à esquerda) na produção Born to Fashion
"Essa situação evidencia uma desigualdade do mercado da dramaturgia, do teatro e do audiovisual. Por mais que tenhamos cada vez mais artistas trans qualificados, ainda vemos as poucas oportunidades de trabalho que essas pessoas teriam repassadas às pessoas cis por conta do transfake" - explica a multiartista, consultora e roteirista Alice Marcone, que também é trans.
Por Mariana
Toledo, do TelaViva news
Aos poucos, a
diversidade vem se tornando mais presente nas produções audiovisuais. E
trata-se de uma demanda do próprio público: uma recente pesquisa da Parrot
Analytics, empresa global de análise de conteúdo, identificou a diversidade
como um assunto cada vez mais em pauta – e mostrou especialmente que a forma
como ela é representada nas produções audiovisuais faz diferença. Analisando
programas de maior demanda com estreias em 2020 na América Latina, mais de dois
terços têm representatividade na comunidade LGBTQIA+. Além disso, produções que
trazem essa temática concentram três quartos da demanda, superando em 48% os
programas sem essa representatividade. A autenticidade também é importante e
geralmente é um reflexo de quem está por trás da tela: quando o diretor também
faz parte da comunidade LGBTQIA+, por exemplo, a demanda cresce 14%.
Nesse sentido,
uma das estreias recentes que se destacou não só por trazer a diversidade à
tona, mas também explorar um tema inédito e contar com representantes LGBTQIA+
na frente e atrás das câmeras, foi "Born To Fashion", do
E!Entertainment. A produção original do canal é o primeiro reality show do
Brasil só com candidatas transgênero, que chega para transgredir a moda
brasileira e revelar o novo rosto fashion do país. O programa foi ao ar pela
primeira vez em 13 de agosto e obteve resultados relevantes: a exibição do
episódio de número um registrou quase quatro vezes mais audiência do que a
média do canal no horário nobre.
Um dos
principais nomes por trás da produção é a multiartista, consultora e roteirista
Alice Marcone, que também é trans. "As pessoas trans são excluídas dos
espaços tradicionais de trabalho porque enfrentam dificuldades estruturais na
sociedade desde muito cedo na vida – não é um problema só do audiovisual",
diz Marcone em entrevista exclusiva para TELA VIVA. "Mas falando
especificamente desse mercado, acredito que devemos pautar a discussão tão bem
elaborada por Renata Carvalho e a organização Monarte em relação ao Transfake
(o ato de um ator cis interpretar uma personagem trans). Essa situação
evidencia uma desigualdade do mercado da dramaturgia, do teatro e do
audiovisual. Por mais que tenhamos cada vez mais artistas trans qualificados,
ainda vemos as poucas oportunidades de trabalho que essas pessoas teriam
repassadas às pessoas cis por conta do transfake", explica.
"Produções que abordam diretamente a temática trans – como 'Born to
Fashion' – são bons exemplos de como uma produtora pode incluir profissionais
transgênero em sua equipe e produzir um programa de qualidade para todos os
públicos. Mas esse é só o primeiro passo", completa. Marcone ainda reforça
como é essencial que a diversidade (de gênero, sexual, étnica e racial) seja
uma exigência na produção de qualquer obra – e não só naquelas que pautam
diretamente essas questões. "A presença de pessoas LGBTQIA+ precisa ser
normalizada no mercado de trabalho, e não limitada em função da construção
apenas das narrativas que lhes concernem", pontua.
Gustavo Baldoni, produtor executivo da Delicatessen Filmes,
que assina a produção de "Born To Fashion", também conversou com TELA
VIVA sobre o assunto. "Nós da Delicatessen Filmes acreditamos que
produções como 'Born To Fashion' são mais do que importantes, são necessárias e
fundamentais, especialmente num país como o Brasil, que ostenta o primeiro
lugar no ranking mundial de assassinatos de pessoas trans; a expectativa de
vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 30 anos, enquanto a da população
média gira em torno de 75 anos. Existe um abismo, que precisa que ser
enfrentado com coragem e disposição para a mudança. É fundamental reconhecermos
a importância da inclusão de todes para a promoção do desenvolvimento
sustentável em todo o mundo. E o entretenimento pode e deve assumir a sua
responsabilidade nesse jogo", declara. Baldoni ressalta que, apesar de ter
um casting composto só por mulheres trans, o reality não fala exatamente sobre
a questão transgênero, e sim sobre a busca pelo sucesso na carreira de modelo e
pela conquista de seu espaço – o que, claro, está intrínseco a essas mulheres,
que tanto precisam batalhar para isso – mas por isso o tema aparece
organicamente na série. "Nós produzimos 'Born To Fashion' para gerar
reconhecimento das histórias dessas personagens, seus sonhos, suas
possibilidades e potências. Não tem pretensão educacional. Para isso, há muita
informação de qualidade disponível pra quem ainda não entendeu a necessidade de
interromper a invisibilidade trans na nossa sociedade", esclarece.
Para além de "Born To Fashion", o canal E! traz
uma preocupação social em diversas de suas produções, inclusive em sua campanha
institucional, "Vozes do E!". Para Marcello Coltro, sênior VP do
canal, a questão social "representa o norte da proposta de nossa marca e
plataforma". O executivo diz que trata-se de ter responsabilidade com a
audiência, composta em sua maioria por mulheres que lutam pela igualdade e
contra o preconceito e discriminação. "O E!, por meio de uma linguagem de
entretenimento e formatos acessíveis, inclui mensagens positivas que objetivam
provocar essa discussão de desigualdade social, questões de aceitação e mudança
de percepção da sociedade em relação a estigmas de forma física, gênero e
idade", define. Entre os nomes que representam a marca, estão Fluvia
Lacerda, Mayara Russi, Nahuanne Drummond e Denise Gimenez, que representam o
"direito de construir uma carreira no mundo da moda mostrando que a beleza
e direito de sentir-se bem consigo mesma não têm medidas"; Penelopy Jean,
Ikaro Kadoshi e Rita Von Hunty, pelo "direito de transformação e a magia
de assumir a alma feminina apoiando a força interior e a aceitação da Diva' que
existe em cada mulher"; e Lais Ribeiro, com o "direito de lutar pelo
certo, de enfrentar e vencer barreiras raciais, abrindo caminhos para futuras
modelos independente de raça ou identidade de gênero", entre outras.
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Série "Todxs Nós", da HBO, criada e dirigida por Vera Egito |
Outra obra recente que se destacou pelo pioneirismo dentro
dessa temática foi "Todxs Nós", que estreou em março na HBO. Criada
por Vera Egito, Heitor Dhalia e Daniel Ribeiro, com direção geral de Vera
Egito, a comédia dramática aborda temas ligados ao universo LGBTQIA+ como
compreensão, inclusão, aceitação e uso da linguagem neutra. Na trama, a atriz
Clara Gallo vive Rafa, jovem de 18 anos, pansexual e não-binárie que decide
deixar a família no interior de São Paulo e mudar-se para a casa de seu primo,
Vini (Kelner Macêdo), na capital. Vini, que já divide o espaço com Maia
(Julianna Gerais), fica surpreso ao descobrir que Rafa se identifica com o
pronome neutro e não com o gênero feminino ou masculino. Já na chegada,
explica, por exemplo, que é prime – e não prima – de Vini.
Os roteiros da série contam com a colaboração de Thays Berbe
e Alice Marcone – que também está na equipe de "Born to Fashion", do E!.
Em entrevista para TELA VIVA, Vera Egito reconhece que o audiovisual ainda é
pouco aberto à diversidade: "São pouquíssimos projetos de ficção nos
streamings e nas TVs abertas com protagonismo LGBTQIA+. Há uma resistência
histórica sobre essas existências na mídia e muita transfobia e muita homofobia
na nossa sociedade. Mas sinto que estamos mudando. O fato de uma plataforma do
tamanho e da importância da HBO produzir uma série como 'Todxs Nós' é prova
disso". Egito destaca que a série traz o debate sobre o uso da linguagem
inclusiva e que é urgente que comecemos a repensar nossos conceitos de
masculino e feminino, uma vez que essa norma "nos aprisiona e gera
violência e exclusão". Mas a produção é uma comédia dramática e, por isso,
esse tema – e vários outros – estão na trama de maneira leve, irônica e
divertida. "Acho essa uma característica essencial do projeto. A série dá
visibilidade para muitas questões mas, antes de mais nada, apresenta
personagens para que você se conecte, se entretenha, ame ou odeie. Há momentos
de militância, momentos de deboche, momentos de emoção. E aí, envolvendo-se com
essas histórias, muito do preconceito e da intolerância são vencidos. Porque a
pessoa não-binária, a travesti e o gay deixam de ser 'o outro' para serem pessoas
próximas, humanas. Pessoas com quem você se importa. E esse é o maior poder da
dramaturgia na minha opinião: trazer mundos que parecem distantes para bem
perto", declara. A diretora ainda adianta que já está com outras produções
engatilhadas – seu próximo longa se passa em 1968 e tem inclusive, como
protagonista, uma jovem lésbica.
Como vice-presidente corporativo de produções originais da
HBO Latin America, Roberto Rios reitera a importância de canais de TV abrirem
esses espaços: "A identidade de gênero e a sexualidade são elementos
humanos universais muito importantes e que devem ser retratados de forma
genuína nas mais diversas obras. Ao dar visibilidade a personagens da
comunidade LGBTQIA+ em nossas produções, apresentamos essas questões para todo
o público, inclusive para pessoas que não têm familiaridade com esse
universo". Falando especificamente sobre "Todxs Nós", Rios diz
que a série tem todos os atributos que marcam as produções da HBO: é autêntica,
genuína e original. E tem a personagem Rafa, que é não-binárie: "Isso
implicou uma série de novidades para nós, desde a maneira como trataríamos a
questão do gênero não-binário até o uso da linguagem inclusiva. Além de Rafa, a
série tem outros personagens bem estruturados que fazem parte da comunidade LGBTQIA+,
o que nos deu a possibilidade de desenvolver bem, com uma sala de roteiro
também diversa. Temos a consciência de que fizemos algo inovador e ficamos
orgulhosos por isso mas, mais ainda, por poder dar voz a pessoas reais, que
vivem neste mundo e não são sempre reconhecidas na produção audiovisual".
O VP lembrou ainda que, com o apoio da consultoria especializada em diversidade
Diversity Bbox, a HBO lançou o "Guia Todxs Nós de Linguagem
Inclusiva", inspirado na linguagem da série. O objetivo do material é
apresentar este assunto para mais pessoas e comunicadores em geral, além de
promover uma reflexão sobre a comunicação como forma ativa de dar visibilidade
a pessoas transgênero binárias ou não-binárias.
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Cena de "Toda Forma de Amor", do Canal Brasil |
O Canal Brasil, por sua vez, também se apresenta como uma
marca constantemente preocupada em exibir produções diversas – o conteúdo
LGBTQIA+ é uma abordagem frequente em sua programação. "Abrir espaço para
essa temática, além de tantas outras, que por muito tempo praticamente não
apareciam na TV brasileira, é um dos papéis fundamentais do Canal Brasil. Está
em nosso DNA", garante André Saddy, diretor geral do canal. No último ano,
por exemplo, a emissora exibiu a série "Toda Forma de Amor", com
texto de Marcelo Pedreira e direção de Bruno Barreto, que conquistou bons
resultados em termos de repercussão e audiência, com 38% acima da média do
horário nobre do canal.
Em 2020, outras produções nesse sentido também ganharam
espaço na grade: é o caso de "Favela Gay – Periferias LGBTQI+" e
"Transgente", além do "Especial Orgulho LGBTQIA+",
programação exibida em junho em comemoração ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQI"
(28 de junho) – neste ano, o Canal Brasil reforçou a importância do tema e
trouxe filmes e séries sobre o assunto ao longo de todo o mês. A exibição
principal dos filmes apresentou resultado 19% acima da média do canal no
horário nobre e foi o segundo conteúdo com maior número de horas consumidas no
Simulcast do Canal Brasil Play. Já o drama LGBT "Tatuagem", de Hilton
Lacerda, é o filme mais visto no Canal Brasil Play. Outro conteúdo de sucesso
ainda dentro da temática é "Transmissão", que estreou em 2019 e teve
uma segunda temporada lançada em junho de 2020. Na atração, Linn da Quebrada e
Jup do Bairro expõem suas rotinas e mostram como suas posturas nos palcos visam
desconstruir estereótipos de gênero, raça e classe. O podcast do programa é o
mais assistido do Canal Brasil. E para além da TV, o canal ainda assina
diversas coproduções de filmes LGBTQIA+ que conquistaram diversos prêmios em
festivais nacionais e internacionais, como "Bixa Travesty".
"Para o Canal Brasil, produzir, incentivar, exibir e divulgar este conteúdo
é uma questão urgente depois de tantos anos de exclusão e invisibilidade.
Seguiremos apostando de forma exagerada neste caminho com a expectativa de cada
vez mais ajudar a reequilibrar e incluir", afirma André Saddy.
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Thereza (Mel Lisboa) na série "Coisa Mais Linda"
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Além da TV fechada, produções LGBTQIA+ também conquistam seu
espaço no streaming. Uma das mais bem-sucedidas produções originais nacionais
da Netflix, "Coisa Mais Linda", da Prodigo Films, acerta ao trazer um
casal lésbico para dentro de uma trama de época – infelizmente, ainda há quem
acredite que a homossexualidade não existia no passado. Para Beto Gauss e
Francesco Civita, sócios e produtores da série, é de extrema importância trazer
essas questões e a realidade, independente da época: "Muitas vezes, é bom
olhar para trás para compreender que as características e qualidades do ser
humano atravessam o tempo. A sexualidade é pessoal e natural e não deveria ser
julgada ou discriminada. Temos que lutar contra o preconceito de ontem e de
hoje. É absolutamente normal para uma personagem como a Thereza ter uma relação
com outra mulher. Ela é amada pela audiência por ser uma mulher livre, forte e
amorosa. Thereza sente e vai; não interessa o julgamento dos demais. O
importante pra ela é ser fiel a si mesma.".
Para a dupla, está cada vez mais comum tratar essa
pluralidade com naturalidade, com canais de TV a cabo e plataformas de
streaming dando mais liberdade no desenvolvimento dessas criações. "Os
canais abertos também estão colocando em pauta essas questões – o que é vital,
seja nas novelas e séries e até mesmo em programas de grade", observam os
produtores. "Na Prodigo, celebramos a qualidade dos profissionais,
independente de gênero e sexualidade. Mas é importante ficarmos atentos para
inibirmos qualquer preconceito e criarmos as oportunidades, dentro e fora das
produções, para que isso se torne cada vez mais equilibrado no nosso
meio", concluem.
Recém-lançada no mercado, a plataforma de streaming 100%
nacional InnSaei.TV anunciou há pouco tempo a série inédita "Três
Quartos", do diretor Airo Munhoz. A mistura de sitcom e drama LGBT
acompanha a história de três jovens que compartilham a vida e seus percalços e
já está disponível gratuitamente na plataforma, que pode ser baixada na App
Store ou Google Play para iOS e Android e acessada também em Smart TVs, tablets
e computadores. A produção é da Substrato Filmes com distribuição da Lira
Filmes e o elenco conta com Rodrigo Barros, João Mesquita e Caroline Varani.
Para TELA VIVA, o diretor Airo Munhoz conta: "A série traz a diversidade
sexual no cerne da questão, principalmente colocando um personagem
tradicionalmente machista fazendo piadas e sendo confrontado dentro da própria
casa. Isso é abordado de forma natural e leve, mas está presente em toda a
obra. É necessário discutirmos a questão do machismo e da LGBTfobia, e fazemos
isso trazendo personagens masculinos trabalhando conflitos, aprendendo a se
relacionar, sair da zona de conforto. É necessário repensar a masculinidade e
essa é a discussão dessa temporada". A ideia, segundo o ele, é vez ou
outra trazer o assunto de fora quase didática, para pessoas que não têm contato
com esse tipo de discussão – e normalmente buscam evitá-la – possam refletir.
Munhoz ainda aponta que a comunidade LGBT sempre esteve na
TV, mas de forma caricata e problemática. "Com a democratização do debate
trazido pela internet, as chamadas 'minorias' ganharam mais espaço e vêm
conquistando aos poucos um lugar na grande mídia de forma realmente
substancial, principalmente pensando no 'G' da sigla, ajudando a mostrar que
somos seres humanos e temos, sim, problemas além da discussão de identidade ou
orientação sexual. Estamos aos poucos saindo da lupa de análise laboratorial
nas obras audiovisuais e andando nas ruas, sendo personagens complexas e com
vários conflitos", observa.
Bia Ambrogi, sócia e fundadora da InnSaei.TV, afirma que a
plataforma foi idealizada para ser um espaço de diversidade e
representatividade. "A necessidade de ter uma janela de distribuição de
qualidade de streaming vale para todo o mercado audiovisual brasileiro
independente, porém, quando pensamos no conteúdo LGBT+ e cultura black, vemos
que mais ainda precisam de telas que os representem", diz. Para ela,
"Três Quartos" é uma série com formato leve e descontraído, com
produção simples e despojada, que gera identificação do público jovem.
"Queremos trazer mais obras como estas, conteúdos bem elaborados que
dialoguem com o público atual e que estão aguardando uma janela que os receba e
os valorize", adianta. A plataforma conta com lançamentos todas às
quintas-feiras.
Apesar do número de produções audiovisuais com
representatividade LGBTQIA+ em suas tramas, elencos e equipes estar crescendo,
como ilustram os casos acima, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Alice
Marcone reflete: "A ausência histórica desse tipo de representatividade
deixou um espaço aberto para novas narrativas e perspectivas. Acho muito
importante pautar que essa demanda por novas representações e narrativas vem
também como consequência desse movimento – ainda incipiente, mas real – de uma
maior inserção das pessoas LGBTQIA+ no mercado. Quando essas pessoas trabalham,
elas se transformam em público consumidor, com suas próprias exigências, e isso
também gera mudanças nas demandas das produções audiovisuais. Por mais que tenhamos
resistências, retrocessos e uma corrente reacionária bem forte no país, essa
transformação nas demandas do consumidor é uma verdade cada vez mais geral do
brasileiro. Essa mudança não só precisa acontecer, como está acontecendo e não
será refreada".