Por Aylê-Salassié F. Quintão*
A legitimidade do jornalismo,
da medicina, da engenharia, ou do direito e assim por diante, vem do
reconhecimento, pela sociedade, do Lugar de Fala de cada profissão.
A certificação pública para o
exercício profissional circunscreve os limites para o exercício das habilidades
de cada um dentro de um locus apropriado, a partir do qual o
sujeito pode falar com autoridade sobre os temas de sua competência.
A menos que se instaure o caos, o
discurso conduzido por ele não está ligado à sua condição de cidadão, nem
a de empregado de uma instituição. No jornalismo, a ética, a responsabilidade
social e o compromisso público permeiam a essência da profissão.
É difícil, por isso, conviver com o
desleixo de alguns no exercício dos seus limites profissionais. Certos
jornalistas e empresas parecem ter um enorme desprezo pelos próprios cânones.
Transitam leviana e sistematicamente na contramão do Lugar de Fala.
Há cerca de dois anos, uma repórter
conhecida falava no Yahoo do momento feliz porque passava como animadora
de auditório e garota propaganda de uma marca de frangos e de
carnes.
Para alguém de boa fé, o fato se
constituiria numa moralidade arbitrária e mórbida, segundo o filósofo
australiano Peter Singer.
- “A imprensa acha que eu vim para
ganhar dinheiro”, dizia a jornalista,.
O leitor replicou imediatamente:
“Ah!.... me engana que eu gosto... duvido que o farias por caridade....
Se é pela propaganda do frango, eu
li que recebeste R$ 25 milhões. Me poupe...”
Outro jornalista orgulhava-se
do fato de ser [...] parte de um fenômeno na TV
brasileira - segundo ele mesmo - o seu “reality show”, que
devassava a intimidade das pessoas e a privacidade familiar. Justificava-se
descontraidamente dizendo que se tratava apenas de “[...}um programa
de entretenimento, gente!” Coincidentemente, um dia antes ele estava na
rua fazendo reportagens.
Nesse diapasão, outro colega
tentava aproveitar-se da Copa do Mundo de Futebol para vender aos
estrangeiros a imagem de mulheres brasileiras.
A publicidade e a vulgarização da
figura do jornalista ameaçam efetivamente o Lugar de Fala da profissão, ao se
contratar profissionais pelo critério, por exemplo, da visibilidade: “estrelas”
do jornalismo para vender produtos e ideologias. Jornalistas, cuja
respeitabilidade foram gestadas em noticiosos nos jornais, tvs e rádios,
e não em novelas ou programas de auditório, aceitam, sistematicamente,
transformarem-se em garotos e garotas propaganda. É o cúmulo da
indignidade para uma profissão que se quer respeitada. No auge da sua
credibilidade, Joelmir Betting aceitou fazer publicidade de uma marca de banco,
e nunca voltou a ser visto da mesma forma. Conspurcara o Lugar de Fala.
Quem sabe o Franklin Martins não
tem razão?
Há um descompasso entre o que a
sociedade espera de um jornalista e de uma empresa jornalística e o que alguns
confusamente produzem, amparando-se no Lugar de Fala da categoria. São pessoas
que deveriam abdicar da condição de jornalista, desocupar o Lugar de Fala, mudar
de categoria, e se filiar a outro sindicato ou conselho profissional. Procurar
um palco próprio . Lá é o lugar delas. Não são mais jornalistas e, por ali,
também não se faz mais jornalismo.
Se não são jornalistas no
discurso e no comportamento, não o são também no salário e nos ganhos
empresariais.
As distâncias tornam-se assim
grandes. Usando o nome da profissão, alguns recebem remunerações e vantagens
astronômicas, enquanto outros, lutando pela ética, se matam em assembléias
sindicais, madrugadas à dentro, para mendigar o salário mínimo profissional,
cujo valor tem correspondido sistematicamente, à menos da metade da renda média
das cidades onde prestam seus serviços.
O fato de alguns não
respeitarem os limites profissionais conduz à desconstrução da própria
habilitação, vulgarizando a profissão e, na mesma esteira, as angústias
sociais transformam-se em piadas e, como tal, por conivência da imprensa
desqualificadas. Alienado, o povo não teria mais porque buscr melhores
condições de vida, nem porque reclamar dos governos . Não seria apenas do fim
do jornalismo, mas do próprio Lugar de Fala da profissão. Os dramas cotidianos
não se alteram em razão que um ator verte levianamente nas
novelas. Sem o respeito ao Lugar de Fala perdemos a dignidade profissional
, até mesmo enquanto cidadãos.
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*Jornalista, professor, Doutor em História Cultural. Catalytica Empreendimentos e Inovação Social.
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