Por Marcelo Zero
Snowden não é um
desertor, um traidor e um criminoso, como afirma o governo norte-americano.
Snowden é um jovem que
entrou na “guerra contra o terrorismo” por amor ao seu país e por idealismo, e
dela saiu pelos mesmos motivos. Ele percebeu claramente a monstruosidade em que
se transformou a NSA e os perigos que as agências de inteligência sem controle
representam para a democracia. Qualquer democracia.
Quando Dilma tomou a
corajosa iniciativa de protestar, na ONU, contra os omnipresentes mecanismos de
espionagem dos EUA e dos Five Eyes,
muitos aqui no Brasil a desdenharam. Tentaram naturalizar a espionagem. Afirmaram que a espionagem existe desde que o
mundo é mundo e que, se os EUA espionam mais, é porque possuem melhores meios
para fazê-lo.
Ignoraram, ou fingiram
ignorar, um dado crucial: a espionagem da NSA e de outras agências de
inteligência dos EUA não tem mais nenhuma relação com a espionagem clássica.
Trata-se de algo qualitativamente muito distinto. A espionagem clássica era
aquele jogo em que os Estados tentavam descobrir os segredos de outros Estados.
Um jogo que envolvia essencialmente espiões, contraespiões, agentes duplos e
informações sigilosas que pertenciam a governos.
Mas o que a NSA faz
hoje é completamente diferente. A NSA devassa sistematicamente, e em escala
mundial, informações que pertencem aos cidadãos comuns. E não são somente “metadados”.
São também os conteúdos. Este artigo, fosse apenas um singelo e-mail para um
amigo, seria devassado pela NSA, já que tem referências ao Snowden e à agência.
Assim, a NSA implantou,
com apenas algumas décadas de atraso, a distopia orwelliana prevista em “1984”.
A diferença é que as “teletelas” imaginadas por George Orwell foram substituídas
pelos computadores, os celulares, os tablets
e todos esses dispositivos que inocentemente conectamos à rede mundial. O resto
é praticamente igual.
Vivemos, portanto, num
mundo sem privacidade. Porém, não é só a privacidade que é ameaçada. Na sua
excelente entrevista dada à repórter Sônia Bridi, Snowden, um sujeito
inteligente e articulado, comenta que esse mecanismo ubíquo e generalizado de
espionagem ameaça nossas liberdades e nossos direitos. Claro. A vigilância
omnipresente limita a livre e espontânea circulação de informações, o oxigênio
das democracias. Sabendo-nos vigiados, vamos, aos poucos, evitando certos temas
e podando palavras e termos em nossas comunicações. É como se vivêssemos num
mundo no qual nossas cartas fossem sistematicamente abertas.
Snowden, uma pessoa
aparentemente discreta e tímida, teve a grande coragem pessoal de denunciar
esse sério perigo à democracia. Merece, portanto, nossa gratidão e nosso
respeito.
Respeito que alguns lhe
negam quando tentam transformá-lo, como tudo no Brasil de hoje, em instrumento
de luta política-eleitoral. Muitos dos que criticaram a presidenta por não ter
ido à Washington, um gesto soberano inevitável naquelas circunstâncias, agora
pressionam o governo brasileiro para dar asilo a Snowden. Mas, caso o asilo
acontecesse, seriam os primeiros a vociferar contra a política externa
“antiamericana” e “terceiro mundista” do governo. É o tal negócio: se ficar o
bicho pega.....
Não obstante, defendo,
como muitos, o asilo a Snowden. Reconheço, por outro lado, que tal concessão
está longe de ser trivial.
Em primeiro lugar,
Snowden teria de entrar em nossa embaixada ou em nosso território. Não existe o
asilo ou refúgio à distância.
Em segundo, há questões
de logísticas e de segurança complicadas. Por exemplo, como trazê-lo ao Brasil
em segurança? Os EUA já demonstraram do
que são capazes, quando obrigaram países europeus a deter o avião presidencial
boliviano por suspeitar que Snowden estava nele. Assim, para que Snowden
chegasse ao Brasil são e salvo, o Brasil teria de contar com a assistência não
apenas das autoridades russas, mas também de muitos países da Europa. Caso
contrário, Snowden poderia transformar-se num novo Assange, que está há dois
anos preso na embaixada do Equador em Londres.
Em terceiro, há algumas
questões jurídicas a enfrentar. O Brasil tem, entre outros, um acordo de
assistência judiciária em matéria penal com os EUA. Tal acordo, firmado em
1997, nos tempos de FHC, não prevê, como outros acordos da mesma natureza, que
a cooperação possa ser negada, nos casos em que o Estado que recebe a
solicitação suspeite de perseguição política contra os acusados. Isso poderia ser um empecilho para a
manutenção do asilo.
Em quarto, há o enigma
do STF. Em 2009, o STF anulou a condição de refugiado de Cesare Battisti,
autorizando a sua extradição solicitada pela Itália. Não fosse a decisão
presidencial de negar a extradição, Battisti já estaria preso na Itália.
Em quinto, há a
delicada questão política-diplomática. As relações bilaterais Brasil/EUA estão
num nível baixo. Evidentemente, é do interesse de ambos os países que tais
relações sejam normalizadas, com base no repeito mútuo. O eventual asilo a Snowden poderia azedar de
vez essa relação. Precisaríamos estar preparados para essa eventualidade.
Evidentemente, a
verdadeira solução, uma solução definitiva, para o caso Snowden dificilmente
virá por um caminho unilateral. É muito improvável que seja uma solução russa
ou brasileira.
Uma solução
multilateral ou plurilateral teria mais chance de ter êxito. Assim como a
questão da liberdade na internet e nas telecomunicações está na ONU, o caso
Snowden, que a provocou, também precisa ser debatido em nível multilateral e
plurilateral. O ACNUR precisaria ser provocado para se posicionar sobre o
assunto. Snowden, que se sacrificou pelas democracias, precisa do apoio de
todas elas.
A solução ideal, no
entanto, seria a solução norte-americana. Snowden deixou claro que quer voltar
para casa. A sua liberdade está em seu país; não em seu exílio forçado. Creio
que chegará o dia em que Snowden será reconhecido nos EUA pelo o que ele
realmente é: um herói que fez jus às melhores tradições de integridade, accountability e transparência da
democracia de seu país.
Contudo, até lá ele
precisará de apoio. Seu tempo na Rússia está acabando e ele precisa de um porto
seguro. Gostaria que esse porto fosse o Brasil. A sua recente entrevista
humanizou-o. Ele deixou de ser Edward Snowden, um tema de geopolítica
internacional, e passou a ser apenas o Edward, um cara legal a quem de bom grado
convidaríamos para tomar um café e bater um papo.
Esse cara se arriscou
muito defendendo liberdades. A minha, a sua, a de todo o mundo.
O mínimo que a gente
pode fazer é tentar retribuir.
Edward, o cara, merece.
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