sábado, 13 de março de 2021

A regionalização da produção pelas mãos do Cade

 

Programa Carrosel, na TV Brasília, marcou época na
transmissão local de conteúdos na Capital Federal

Avaliando as chamadas “condutas anticompetitivas” nos segmentos de TV aberta e por assinatura, o Cade aponta que a estruturação em redes, para efeitos de concentração, "é negativa, pois limita a variedade de conteúdo, sendo transmitida menos programação do que existiria, se cada geradora fosse diretamente responsável pelos produtos audiovisuais transmitidos".


Por Chico Sant’Anna*
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa

 

 A Constituição Federal definiu, após mobilização da Fenaj, Fitert e Fitel, que a produção educativa, cultural e jornalística no rádio e na televisão deve ser regionalizada. O artigo 221, porém, nunca vigorou devido à falta de regulamentação. Não por falta de iniciativas. A pressão de grandes redes midiáticas e a chamada bancada da mídia nunca permitiram que isso acontecesse. Agora, estudo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, órgão do ministério da Justiça com poder de avaliar a existência de cartéis e monopólios na economia brasileira, pode fazer com que a regionalização venha acontecer.

Desde 1988, a concentração da produção midiática se exacerbou, chegando ao rádio. Pela lei, não existe emissora repetidora de rádio. Todas são geradoras e, como tal, obrigadas a produzir localmente seus conteúdos. O modelo da TV, contudo, migrou pro rádio. Emissoras regionais passaram a ser simples retransmissoras da produção do Centro-Sul, notadamente, do Rio de Janeiro e São Paulo.

Avaliando as chamadas “condutas anticompetitivas” nos segmentos de TV aberta e por assinatura, o Cade aponta que a estruturação em redes, para efeitos de concentração, "é negativa, pois limita a variedade de conteúdo, sendo transmitida menos programação do que existiria, se cada geradora fosse diretamente responsável pelos produtos audiovisuais transmitidos".

Para o Cade, a concorrência pela audiência das programações só ocorre entre as cabeças de rede de abrangência nacional. "Historicamente, a última entrada significativa no mercado de cabeças de rede nacionais se deu em 1999, com a entrada da Rede TV. Portanto, tal mercado não é dinâmico. O mercado é também altamente verticalizado, uma vez que para se tornar uma cabeça de rede nacional, a empresa deve atuar simultaneamente nas etapas de transmissão de conteúdo, programação e produção de conteúdo", aponta o órgão.

Embora o Cade não mencione, há o inciso II, do artigo 221, até hoje desrespeitado, que prevê a produção independente que objetive a divulgação da cultura nacional e regional.

A bandeira da regionalização, levantada na década de 80 pelos trabalhadores do setor, tinha como pano de fundo preservar as diferentes culturas regionais, dar espaço a valores locais, evitar a pasteurização da informação, e fomentar maior geração de emprego e renda.

Gerações que nasceram após o advento das transmissões via satélite não vivenciaram os telejornais locais, que tratavam de temas locais, nacionais e internacionais. Tão pouco os programas musicais e humorísticos das diversas cidades. Aqui mesmo no DF, a TV Brasília embalou gerações com programas do tipo Carrossel, Quem Sabe Viaja. Nomes como Carranquinha e Titio Darlan encantaram milhares de crianças. Hoje, não teriam espaço na grade de programação.

Na música, valores locais como Ney Matogrosso, Cassia Eller, Paralamas do Sucesso, dentre tantos outros, só conseguiram vingar depois que migraram para o Rio e São Paulo e lá obter a visibilidade midiática que só as cabeças-de-rede propiciam. Até no Jornalismo, do Planalto Central, muita gente foi buscar espaço no Rio e São Paulo. Vide os casos recentes de Poliana Abrita e Tadeu Schmidt, mas no passado teve também Amália Rocha, Mauro Naves, Ana Paula Padrão, Leilane Neubarth, dentre vários e várias outras.

Para as empresas é mais barato produzir e mais fácil gerir uma só grade de programação, difundida nacionalmente. Se reduz custos, este modelo diminui a oferta de trabalho, a diversificação cultural e informativa e fortalece uma agenda temática formulada a partir de uma única perspectiva. Com as grandes redes, o caboclo da Amazônia sabe mais das enchentes do Tietê do que as dos igarapés amazônicos.

O Cade aponta ainda como condutas anticompetitivas os contratos de direito de transmissão de eventos esportivos. "Principalmente com relação ao abuso de poder econômico, abuso de posição dominante e acordo de exclusividade". Nos anos 70, em Brasília, podia se ver o futebol do Rio, na Globo, o paulista, na Bandeirantes, e o do Rio Grande do Sul, na TV Nacional – hoje TV Brasil – já que os generais de plantão apreciavam o futebol gaúcho. Hoje, na maioria dos casos, o jogo é um só para todo o Brasil. O espectador é obrigado a torcer ou secar times que não lhe dizem nada culturalmente.

Não se sabe até onde o Cade pretende levar suas conclusões. Pautaria o governo a disciplinar a regionalização da produção de rádio e TV? O momento atual, em que o Palácio do Planalto tem se bicado com a maioria dos grandes conglomerados midiáticos, pode ser um elemento motivador para que o Executivo proponha um novo modelo.

Pensar num país com as dimensões do Brasil com um só cardápio de conteúdos midiáticos é ruim e joga contra a criatividade regional. Entretanto, mudar de supetão as regras da produção teleradiofônica, principalmente depois dos efeitos econômicos da Covid, pode ser nocivo à maioria dos meios de comunicação e levar alguns à sucumbência.

Regulamentar o artigo 221 por “canetada”, seja medida provisória ou norma do Cade, não seria de bom alvitre. O Congresso Nacional é que deveria tomar à frente a responsabilidade. Junto com a regionalização, a exemplo do que ocorre em países como a França, deveria pensar também na regulamentação da distribuição de verbas publicitárias, públicas e privadas, para que mídias locais, regionais e nacionais sobrevivam. Lá, canais nacionais de TV, por exemplo, não veiculam propaganda do varejo. Essa publicidade cabe às mídias locais, impressas, radiofônicas ou televisivas. 

Mas esse é um debate mais profundo, que fica para outro artigo.

 

 

*Chico Sant’Anna é jornalista, documentarista e pesquisador em Comunicação, com Doutorado pela Universidade de Rennes 1 – França. Durante a Constituinte, era vice-presidente Regional da Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj, tendo atuado diretamente nas gestões para a redação do Capítulo da Comunicação Social, na Constituição de 1988.

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