domingo, 19 de fevereiro de 2012

Caso Eloá: Vida e morte em tempo real

Por Samuel Lima e Jacques Mick*. Artigo publicado originalmente no caderno Idéias, do jornal A Notícia, em 2/11/2008.

“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”, escreveu Guimarães Rosa. A imagem é adequada para refletir sobre a tragédia que vitimou Eloá Cristina Pimentel, 15 anos, no final da tarde de 17 de outubro. 
A atuação da mídia, e em especial da televisão, na cobertura jornalística-espetacular do cárcere privado em Santo André tem sido tema de apaixonado e relevante debate, que chega a transcender os limitados espaços públicos que habitualmente se dedicam à crítica dos meios de comunicação – alguns jornais, sites de internet, programas em canais fechados. 
Duas semanas depois dos shows em que foram convertidos o sepultamento do corpo da jovem e a doação de seus órgãos, alguns pontos essenciais sobre a cobertura ainda não foram suficientemente analisados. Destacamos dois: as conseqüências, para o desfecho do episódio, da transformação do “seqüestrador” em celebridade instantânea e a atuação acrítica da mídia diante de patologias sociais que ela reflete e pode reforçar. Julgar tecnicamente os erros da polícia ou analisar os aspectos psicológicos do caso foge à nossa competência; por isso, nosso olhar foca a atuação dos jornalistas e da fauna de comunicadores, modelos, pregadores, advogados e peritos de reputação ambígua reunidos em torno de coberturas sensacionalistas. 

As cem horas de fama do “príncipe do gueto” 

Durante quatro dias, em mais de cem horas de fama, o raptor de Eloá, Lindemberg Fernandes Alves saiu do anonimato para a condição de celebridade instantânea, protagonista e ator de um enredo que, vitaminado pela TV de maneira marcante, o transformou no autoproclamado “príncipe do gueto”. A cobertura da televisão (Globo, Record e Rede TV!, especialmente) foi orientada pelos valores-notícia do sensacionalismo e dos números de audiência. As emissoras se atiraram sobre o caso feito sete abutres.

Parece não restar dúvida de que a atuação da televisão contribuiu para o desenlace fatal, prejudicando sensivelmente as negociações. Para Rodrigo Pimentel, roteirista do filme “Tropa de Elite”, psicólogo e ex-comandante do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais, do Rio), “o que eles fizeram foi uma irresponsabilidade tão grande que eles poderiam, através dessa conduta, deixar o tomador das reféns mais nervoso, como deixaram, poderiam atrapalhar a negociação, como atrapalharam” (www.terramagazine.terra.com.br). O apresentador José Luiz Datena (Band), que se recusou a colocar Lindemberg no ar, ao vivo, foi enfático: “Jornalista não é negociador. Uma palavra errada que você coloca, o cara pode pegar e matar alguém lá dentro. O fato de ele ter falado muito em televisão e aparecido muito em televisão pode ter prolongado o seqüestro, sim”. 

O enquadramento da cobertura desenhava Lindemberg desde o primeiro momento como um jovem em crise amorosa, trabalhador, honesto, sem passagem pela polícia – uma situação de risco baixo, ainda que a informação apurada pelos repórteres fosse pouco fidedigna. Em intermináveis diálogos na TV, entrevistadores e fontes procuravam tranqüilizar o raptor, como se falassem diretamente com ele. Um advogado, num programa matutino, vaticinou que o cárcere privado terminaria “em pizza”, com o “casamento entre o jovem e sua namorada”; enquanto isso, as duas jovens permaneciam sob a ameaça real de morte. A polícia declarou-se constrangida pelo cerco da mídia e pela exposição do caso ao vivo; teria decidido as estratégias a adotar em função de qual seria seu impacto nas telas de TV.

Um momento nos parece decisivo, revendo as entrevistas que os jornalistas da Record, Globo e Rede TV! fizeram com o raptor. No final da manhã de 15 de outubro, quarta, o negociador da polícia militar, capitão Adriano Giovaninni, tinha fechado um acordo com Lindemberg, que prometera depor armas e sair do apartamento, no começo da tarde. Entra em cena o repórter Luiz Guerra, do programa “A tarde é sua” (Rede TV!), apresentado por Sônia Abrão. Guerra começa a “entrevista” mentindo para Lindemberg (dizia ser “amigo da família”), depois admite sua condição de repórter e comete um festival de atrocidades como dublê de jornalista e “negociador”: promete coisas em nome da polícia (“o capitão garante a tua integridade”), faz recomendações a Eloá (com quem fala brevemente), finge intimidade com o seqüestrador chamando-o de “filho” e “querido” e, efetivamente, começa o processo de celebrização do criminoso. Quando Lindemberg concorda em gravar, sua primeira pergunta ao jornalista é “Cêis tão ao vivo aí?”, demonstrando noção exata do espaço midiático.

Depois dessa entrevista, o raptor mudou sensivelmente de postura. (A interpretação das causas psicológicas dessa metamorfose é tema para especialistas na alma humana; aqui, nos detemos às evidências). Lindemberg ignorou o acordo firmado com o capitão Giovaninni e passou a dar entrevistas a outros veículos, incluindo-se as redes Record e Globo, além da Folha Online, portal noticioso do jornal paulista Folha de S. Paulo. O assédio era tanto que o promotor público, Augusto Rossini, que acompanhava o caso reclamou da dificuldade de contato com Lindemberg: “Eu vi o negociador tentar e não conseguia porque os telefones estavam ocupados, todos os telefones ali sistematicamente ocupados, inclusive sua irmã precisava gritar na janela do apartamento pra ele desligar, para que o negociador pudesse falar com ele”. A TV Globo veiculou no Jornal Nacional uma “entrevista” da jornalista Zelda Melo, no mesmo dia 15. Esgrimindo dotes de “negociadora”, a repórter contava: “Lindemberg disse que está esperando o momento certo para libertar Eloá. “Vou liberar que nem liberei a Nayara e os outros. Não vou dar hora, nem momento, não vou avisar. Vai acontecer e pronto”, disse o rapaz pelo telefone. A Record também fez, a partir daí, várias “entrevistas” ao vivo com ele, jogando mais lenha na fogueira de vaidades da nova celebridade instantânea.

A cobertura de seqüestro em andamento costuma ser evitada pelos meios de comunicação por outro motivo: para proteger vítima e familiares e não criar dificuldades à ação da polícia. A transmissão ao vivo em TV, rádio e internet do cárcere privado em Santo André não obedeceu a esse compromisso (o que não nos parece justificável em função das distinções entre os tipos de crime). Em casa, diante do computador e do televisor, Lindemberg acompanhava os relatos jornalísticos sobre a ação da polícia. Em contrapartida, a polícia sabia pouco sobre as ações dele: as entrevistas que deu por telefone à mídia não acrescentaram nada ao que a polícia já sabia – e o uso das linhas ainda prejudicou as negociações. Entrevistar um raptor durante um crime em andamento não é o mesmo – nem tecnica, nem eticamente – que entrevistar um político ou um esportista no exercício de suas atividades. 

Entronizado no altar da televisão, Lindemberg Alves passou de anônimo a ator principal, a dizer que era “o cara”. Ego inflado, na tensão das horas e do cenário midiático produzido, ele passou a tratar seus interlocutores da PM com superioridade, no relato dos policiais. O desenlace da trama, em que se misturavam imaginação e realidade, já estava escrito. Em questão de horas, a desastrada invasão do local gerou a cena final. 

As fotos do caixão, o narcisismo, a mídia 

Convertido de criminoso em celebridade da hora, Lindemberg tornou-se uma espécie de protagonista gerador de oportunidades, do tipo apresentado em “Assassinos por natureza” (Natural born killers, 1994). No filme dirigido por Oliver Stone, Mickey Knox e a mulher, Mallory, são serial-killers obcecados com a notoridade, perseguidos por policiais e jornalistas em busca, eles também, de fama. Entrevistas exclusivas com os criminosos para a TV são o troféu perseguido pelo repórter Wayne Gale – que no filme acaba morto diante das lentes, desfecho inusitado para alguém que usava a própria câmera como uma arma. 

Assim como criminoso e vítimas, outros cidadãos envolvidos involuntariamente com o caso pela mídia também se tornaram celebridades instantâneas. Pacientes que receberam os órgãos de Eloá foram identificados pelo nome e suas histórias, reveladas por parte da mídia – apesar da recomendação explícita de preservação do anonimato do doador e do receptor de órgãos. 

Outro problema comum à cobertura foi a identificação dos nomes das reféns e a exibição de suas imagens, em parte dos veículos, antes do desfecho do episódio. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê multa de três a vinte salários de referência (e o dobro, em caso de reincidência) para “quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito”. O texto da lei não limita a divulgação a quem comete o delito, mas a estende a todo “envolvido”, incluindo as vítimas. Veículos do mesmo grupo tiveram comportamento distinto: enquanto a Folha Online protegeu a identidade das vítimas até o desfecho (inclusive borrando o rosto das meninas nas fotografias publicadas na internet), o jornal de maior tiragem do país, a Folha de S. Paulo, publicou a foto de Eloá na capa da quinta-feira, 16, com enorme destaque. 

A fila de visitantes do velório – comparável às mortes de celebridades não-instantâneas – multiplicava a midiatização do evento: além das emissoras de TV e da cobertura fotográfica de jornais e repórteres, imagens do caixão branco eram produzidas incessantemente por onipresentes câmeras digitais em movimento (era proibido parar). Produziram-se camisetas com a foto da jovem, reproduzidas com destaque nas tomadas para a TV e nos jornais do dia seguinte. Para escapar do circo, providenciou-se um culto reservado para a família, pouco antes do enterro. Tais imagens alimentaram relações em rede já caracterizadas por exibição narcísica. 

Na cobertura ao vivo durante dezenas de horas, na ausência de informações relevantes no canal de áudio, a imagem era um convite ao testemunho mórbido: aguardemos o clímax, a qualquer momento. A cobertura ao vivo transformou o crime numa espécie de Big Brother: quem vai sair da casa? Quem ele vai eliminar? 

Assim, um desfecho sem mortes teria sido um anticlímax? A pergunta é tão absurda quanto a situação daquela cobertura ao vivo. Circunstâncias como essa só podem ser respondidas por uma escolha de natureza ética. “O jornalista não pode divulgar informações (...) de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes” , diz o artigo 11 do novo Código de Ética dos Jornalistas, um documento bonito, sem força de lei.

Por outro lado, a partir de que momento quem posa diante das câmeras perde a inocência? Ao pedir a visita de um jogador de futebol, durante a recuperação, a jovem sobrevivente virou alvo de escárnio: parecia bizarro perseguir tal recompensa, mobilizando a notoriedade alcançada em circunstâncias tão dramáticas. Mas ela e sua amiga eram descritas pela mídia como espécies de anjos. “Uma das garotas mais bonitas, além de uma pessoa educada, estudiosa e atenciosa com os colegas”. “Decidida e madura”, “carinhosa com os amigos”. A imprensa toma como expressões da verdade posts e links das vítimas em comunidades de relacionamentos. 

A trágica história do seqüestro e morte de Eloá, transformado emreality show , parece confirmar o que escreveu a filósofa Marilena Chauí: “A telenovela aparece como relato do real, enquanto o noticiário aparece como narrativa irreal”. Retomando um aspecto central do debate, o jornalista Carlos Castilho enfatiza: “As emissoras de televisão estão eliminando a diferença entre o real e o simulacro nas suas transmissões e criando as condições para que o espectador também acabe por ver tudo como se fosse um realityshow. Essa confusão entre realidade e representação está na origem do processo pelo qual os assassinos conseguem a notoriedade impune, que pode estimular imitadores”. Nos casos que se seguiram ao assassinato da jovem paulista, o rastro mimético da ação midiática aparece, impune. 

Ao exibir o crime em fartos espaços, em todos os horários, a pretexto da altíssima audiência, a mídia não apenas flertou com a ilegalidade: revelou-se irresponsável, ao desrespeitar o seu próprio código de ética. A televisão, especialmente, jogou um papel decisivo na morte de Eloá. As digitais de produtores, repórteres, apresentadores, editores e chefes de reportagens estão impressas na arma que o seqüestrador usou para matar sua ex-namorada e ferir Nayara Rodrigues da Silva. 


* Samuel Lima e Jacques Mick são professores do curso de Jornalismo do Bom Jesus/ Ielusc

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