quarta-feira, 22 de junho de 2011

Artigo: RECORD NEWS - Sequestro de Brasília: não basta a instantaneidade

Convido à leitura de artigo de minha autoria, publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Por Chico Sant'Anna


A cobertura ao vivo de um evento não roteirizado, ou seja, quando não se sabe que fatos poderão acontecer, requer alguns predicados da estrutura e dos profissionais que irão fazê-la. Não basta a instantaneidade, é preciso conteúdo. Não basta apenas colocar a imagem no ar, por mais que uma imagem valha por mil palavras. Se assim o fora, bastaria uma câmera ligada na arquibancada de um estádio para a transmissão de um jogo de futebol. O cidadão quer mais, quer detalhes, quer bastidores, enfim, quer que lhe sejam respondidas, no mínimo, aquelas perguntinhas básicas da pirâmide invertida que são ensinadas nas primeiras classes de qualquer curso de Jornalismo.

Como morador de Brasília, e estando fora da cidade, fiquei com a atenção concentrada no desfecho do sequestro que ocorreu numa quadra da Asa Sul, região nobre, do Plano Piloto de Brasília, na terça-feira 14/6. Onde me encontrava, a televisão estava sintonizada na Record News. Não posso garantir, mas creio que a emissora, por ser all news, foi a primeira a entrar no ar com a cobertura. Um repórter – prefiro não declinar o nome –, com apoio de imagens aéreas, narrava ao vivo os acontecimentos. Uma das primeiras falhas desta cobertura foi o fato do repórter não ter ideia do que a câmera do helicóptero mostrava, de não ter o que é tecnicamente denominado de retorno de imagens. Pode parecer preciosismo, mas este detalhe operacional levou muita gente, inclusive as âncoras do telejornal, a entenderem equivocadamente o que se passava.

Faltou informação

Enquanto o repórter narrava em off – apenas sua voz aparecia – a câmera do helicóptero focava um grande sobrado amarelo, levando todos a crer que as mulheres reféns dos sequestradores se encontravam naquela casa. Na verdade, o sobrado estava defronte ao local do crime e era utilizado como apoio pelos policiais militares. Quando estes começaram a entrar na residência – calmamente, pois não era um assalto –, as âncoras interromperam o repórter para anunciar que a polícia invadia o cativeiro. Ledo engano. Alguns momentos chegaram a ser hilários. Sem ver o que era exibido, o repórter narrava o que via e em certo momento disse que o crime acontecia numa casa verde, e a câmera focava uma rosa; em outro, narrou que os policias estavam agachados, mas a imagem mostrou o contingente de pé, atrás de uma cerca metálica. A impressão que passou é que o cinegrafista que se encontrava no helicóptero também não sabia o local exato do sequestro, pois focava distintas casas e, na minha avaliação, nenhuma delas era a correta. Na verdade, pelas imagens que vi na emissora, fiquei sem ter certeza de qual residência fora invadida pelos sequestradores.

Uma pergunta básica que toda reportagem deve responder é o “onde?”, o local dos fatos. A reportagem ao vivo levou muito tempo para situar os espectadores e ainda assim o fez de forma parcial e equivocada. Mas parecia que o repórter não conhecia Brasília, pois não soube situar os fatos nem para os espectadores da capital federal, que gostariam de minúcias, nem aos espectadores do resto do país, que não conhecem Brasília. Aos candangos, bastaria dizer que o sequestro ocorria na Quadra 711 Sul, bloco K, e todo mundo se localizaria. Aos demais brasileiros, deveria ter dito que o sequestro ocorria na Quadra 711 da Asa Sul, uma região residencial do Plano Piloto, entre a principal artéria comercial da cidade, a Avenida W. 3 Sul e a Avenida W. 4 Sul, onde se concentram escolas, igrejas, e clínicas médicas.

Foi necessário quase um interrogatório ao repórter, por parte das âncoras, para que ele desse alguma informação sobre a localidade, e mesmo assim o que passou não estava preciso. Disse que se tratava de uma entrequadra. No jargão de Brasília, entrequadra é a área existente entre duas quadras, comerciais ou residenciais, onde normalmente existe área de lazer ou pequeno comércio. Nenhuma das duas era o caso. Como se vê pelo endereço, o bloco K significa a existência de, pelo menos, outros 11 blocos de casas geminadas – parede com parede – o que poderia, inclusive, dificultar a ação dos policiais no cerco.

Uma “idosa” na faixa dos 40 anos

Na geometria de Brasília, projetada por Lúcio Costa, estas residências têm ruas de acesso pelos fundos e a parte frontal das casas olha para uma área verde, um grande jardim comum a todos. As ruas são como becos, não têm saídas. De carro, só se sai por onde se entrou. A pé, a circulação é longitudinal, paralela aos blocos. Ou seja, uma eventual fuga dar-se-ia pela direita ou pela esquerda. Bem o repórter informou que os sequestradores tinham pelo menos umas quatro rotas de fuga possíveis. Mesmo que somemos a opção motorizada com as a pé, dariam apenas três. Disse mais, informou que o local do crime estava debaixo de frondosas árvores que davam uma cobertura aos delinquentes. Impossível, pois, como informei, entre um bloco e outro existe de fato um grande jardim arborizado, mas nenhuma casa é erguida sob elas: trata-se de área pública não edificável.

Precisão na gramática e na matemática é também um requisito necessário. Na narração da emissora “houveram” muitos erros, mas que talvez fossem admissíveis pelos novos livros didáticos do MEC. Na geometria, raio virou sinônimo de perímetro. A reportagem informou que o cerco policial cobria um perímetro de 500 metros. Ora, então o raio deste cerco seria de apenas 79,5 metros, menor do que a área da residência, sendo que cada bloco residencial nesta região é composto por, pelo menos, uma meia dúzia de casas coladas umas as outras, parede com parede. Sabemos que muitos colegas de profissão optam pelo jornalismo por não serem afeitos aos números, mas precisão é uma exigência fundamental no nosso ramo. Creio que ele queria dizer que o raio do cerco era de 500 metros e mesmo assim teria errado no cálculo, pois a circulação de veículos foi bloqueada numa distância muito maior.

Outro juízo de valor emitido pela reportagem foi quanto à faixa etária de uma das reféns. O repórter informou que havia uma pessoa de idade avançada, dando ideia de ser uma idosa, para revelar, em seguida, que a mesma estaria na faixa dos 40 anos. O comentário dele deixou uma cinquentona que assistia à cobertura indignada.

Falhas e erros bobos

Esta cobertura nos reforça a necessidade de analisar urgentemente o que deve e o que não deve ser levado ao ar em coberturas ao vivo deste tipo. Jornalistas, radialistas e especialistas em casos de sequestros precisam refletir sobre o binômio liberdade de expressão e segurança do cidadão. No caso em exame, ao longo da transmissão, o repórter da Record News informou que existia uma quarta pessoa na residência, que estava escondida, e que passava por celular informações detalhadas à polícia. Certamente, se os marginais estivessem assistindo à cobertura – não sei se o estavam – sairiam furiosos em busca desta refém desconhecida. A informação, embora importante jornalisticamente, poderia ter colocado em risco a vida daquela pessoa.

De um balanço geral, temos que concluir com a ideia com a qual abrimos este texto. Não basta a instantaneidade. Profissionais precisam estar capacitados tecnicamente. Precisam conhecer profundamente a cidade onde vivem. Não basta o lead. Para sustentar uma transmissão ao vivo é necessário cultura geral e precisam de uma retaguarda. Não basta colocar um herói solitário com um celular ou um microfone. E aqui, uma ressalva: nenhuma crítica pessoal ao repórter que lá segurou como podia a transmissão ao vivo da Record News. As críticas são à organização estrutural. Para que se possa fazer um trabalho de qualidade, é necessário primeiro retorno de áudio e vídeo para que se possa narrar o que os espectadores estejam vendo. É preciso uma retaguarda com um núcleo de produção ativo que o municie com informações, pesquisas; ajuda de computação gráfica – o sequestro levou horas e poderia ter contado com uma maquete eletrônica, um mapa de Brasília ou algo parecido. Enfim, precisa um aparato técnico e humano que hoje, salvo raríssimas exceções, o modelo comercial das emissoras não está disposto a custear e, por isso, falhas e erros bobos são levados ao ar desinformando o cidadão e colocando na berlinda a qualidade de nossas televisões. Se num sequestro foi assim, imaginem como teria sido num tsunami.

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[Chico Sant´Anna é jornalista e documentarista,
editor do programa Diplomacia, da TV Senado,
doutor em Ciências da Informação e da Comunicação
pela Universidade de Rennes 1 – França]

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