sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Rodolfo Walsh e o jornalismo militante

Por Silvia Adoue*, publicado em Brasil de Fato

“Não me deixem sozinho, filhos da puta”. Através da persiana do seu quarto, o jornalista ouvia a súplica do soldado agonizante. Dessa vez, a violência se apresentava bem em frente de sua casa, transformada em trincheira dos confrontos. Quem mandou morar em frente a um quartel? Um golpe de Estado surpreendeu Rodolfo Walsh, naquela noite de 9 de junho de 1956, enquanto ele jogava xadrez. O levante pretendia restaurar o governo legalmente eleito do general Juan Domingo Perón, derrubado no ano anterior. Na manhã seguinte, a ditadura militar derrota os rebeldes e fuzila seus líderes.

O jornalista, 30 anos, tradutor e autor de novelas policiais, inveterado jogador de xadrez, casado, duas filhas pequenas, procurou esquecer o acontecido e continuar sua pacata vidinha. “Perón não me interessa, a revolução não me interessa. Posso voltar ao jogo de xadrez? Posso. Ao xadrez e à literatura fantástica que leio; aos contos policiais que escrevo; ao romance ‘sério’ que planejo para daqui a uns anos, e mais algumas outras coisas que faço para ganhar a vida e que chamo jornalismo, embora não seja”.

Nariz na porta

Uns meses depois, um amigo lhe desliza uma informação: “Tem um fuzilado que vive”. Naquela noite de 9 para dez de junho, um par de horas antes da decretação da lei marcial, a polícia provincial levou treze homens para um lixão e os fuzilou. O jornalista decide investigar.

Os seus motivos? “Não sei o que me atrai em toda essa história difusa, distante, cheia de improbabilidades”. Quer dar um furo jornalístico, depois lembrará. Ou talvez recorde a voz do soldado morto, naquela noite, sem que tivesse feito nada para ajudá-lo. Ou porque sente vergonha, como depois confessará, ao se encontrar com Livraga, “o fuzilado que vive”, quando este desabotoa a camisa para mostrar a marca da bala. O fato é que se apressa a escrever, temendo que alguém saia na frente dele. Mas, depois, percorre os jornais de circulação nacional e dá com o nariz na porta. Termina publicando numa folha sindical que fi cava pendurada nos quiosques.

Os fuzilados daquela noite não tinham qualquer relação com o levante. Tornaram-se suspeitos de rebelião apenas por serem trabalhadores (e peronistas). Mas aquele putsch pegou quase de surpresa a todos. Quem mais sabia dele era o próprio governo. Dois oficiais legalistas do Exército e alguns civis reuniram uma espécie de “armada Brancaleone”. Os sindicatos tinham sido arrancados das mãos dos trabalhadores, e estes estavam completamente desorganizados. Os treze fuzilados de 9 de junho, longe dos acontecimentos políticos, estavam reunidos na casa de um vizinho, num subúrbio de Buenos Aires, apenas para ouvir a transmissão radiofônica de uma luta de box.

Repercussão

O governo reconhece os fuzilamentos dos líderes, que ocorreram após a promulgação da lei marcial, mas nada diz do outro massacre: o do lixão. A folha sindical começa a circular com as poucas informações reunidas. Timidamente, outras testemunhas vão se aproximando. A grande imprensa é obrigada a se pronunciar. E o governo, através dela. O fuzilamento foi ilegal. Estava fora, inclusive, da própria legalidade do governo militar, pois o massacre aconteceu antes da decretação da lei marcial.

O jornalista é ameaçado. Abandonando sua vida pacata, esconde-se num subúrbio, consegue um documento falso e passa a andar com uma arma de pequeno calibre. À primeira matéria, soma-se outra e mais outra. Cada nova folha sindical é esperada nos quiosques, como um novo capítulo da novela, pelos trabalhadores que, naquela noite, também tinham ouvido a transmissão da luta de box e, agora, pensam que aquilo que aconteceu com os treze bem podia ter acontecido também com eles. A “novela” vai crescendo. Em março de 1957, um editor se atreve a publicar a reportagem de investigação, num livro que o jornalista e escritor Rodolfo Walsh chama de Operação Massacre.

O texto é, ao mesmo tempo, uma descrição dos acontecimentos, um diário de investigação, uma peça de acusação do crime de Estado e o relato da conversão do jornalista. Walsh disse: “Operação Massacre mudou minha vida. Escrevendo-a, compreendi que, além das minhas perplexidades íntimas, existia um ameaçante mundo exterior”.

Ritmo vertiginoso

Na primeira parte – “Os personagens” –, um retrato de cada um dos treze fuzilados, alonga-se no seu cotidiano de trabalhadores suburbanos, na jornada de 9 de junho, até o momento em que se reúnem, na noite, em torno do aparelho de rádio. Quando chega à segunda parte – “Fatos” –, o texto passa a ter um ritmo vertiginoso, com frases curtas e em tempo presente. A escrita é “ofegante”. O ponto de vista é aquele dos fuzilados. Na hora do massacre, um subtítulo anuncia: “Tempo se detém”. A experiência é vivida como uma alucinação, perde-se a noção do tempo, que é, justamente, a prova do crime de Estado. A terceira parte – “Evidências” – é o relato da batalha das versões. O crime de Estado é duplo: assassina e oculta o assassinato. A tarefa do jornalista-detetive é construir a história com os relatos fragmentados dos sobreviventes e das testemunhas, desmontando as sucessivas versões ofi ciais.

Rodolfo Walsh havia comemorado o golpe que derrubou Perón e, como a maioria dos intelectuais da época, detestava os peronistas. Havia escrito dois artigos a favor da ditadura militar. Mas ouviu o soldado que não morreu gritando, como ele esperava, “Viva a pátria!”. Morreu defendendo, obrigado, as posições do governo. Alguma coisa não encaixava, e o jornalista queria entender. Aproximou-se das testemunhas, visitou suas casas, viu de perto a vida que os trabalhadores peronistas levavam. Não eram “heróis” de cinema. Como o próprio Walsh, eram homens e mulheres que se atreviam a denunciar a ditadura. Operação Massacre, a investigação e a escrita, é também a história da transformação do seu autor.

Militância

Walsh tornou-se um jornalista e escritor militante. Abandonou o gênero policial para se dedicar à investigação de crimes de Estado, como o assassinato de um advogado, ponta visível de uma guerra interna das Forças Armadas pelo controle dos grandes jornais. Mas nunca abandonou a literatura ficcional. Continuou escrevendo, mesmo não publicando. Para ele, a literatura ficcional era um espaço de experimentação e refl exão, um método de conhecimento. Os seus achados formais migraram da fi cção para o jornalismo e vice-versa, na procura para encontrar o tom justo, o ritmo necessário, a palavra mais adequada para dar conta da realidade, para provocar um efeito de leitura. A literatura é, dizia ele, “um avanço laborioso através da própria estupidez”.

A convite de Jorge Ricardo Masetti, um dos homens de confi ança de Ernesto Guevara, Walsh foi a Cuba para se integrar à recém-fundada agência de notícias Prensa Latina. Sem querer, num plantão da agência, descobriu uma mensagem cifrada, que chegou por engano, para a máquina de telex. Com a ajuda de um pequeno manual, conseguiu decifrá-la: continha informações sobre a invasão à Baía dos Porcos. De alguma maneira, continuou fazendo tarefas de inteligência e contrainteligência.

Comunicação popular

Voltou para Argentina, onde dirigiu o semanário CGT, da central combativa dos trabalhadores, com correspondentes em todos os locais de trabalho. Já à frente de uma rede popular de informação, investigou outro crime, a morte de um sindicalista pelego, que revelava toda uma trama que associava dirigentes sindicais, empresários e o aparelho repressivo do Estado. Essa investigação e sua divulgação contribuíram para a formação de uma corrente socialista no movimento sindical. Na central dos trabalhadores, redigiu, em 1973, o Programa da CGT: fundamentais para derrubar a ditadura e erigir um governo popular. Nesse contexto, entrou para a organização Montoneros, onde se ocupou do setor de comunicação, de inteligência e contrainteligência.

Na noite de 24 de março de 1977, um ano exato depois do golpe de Estado e uns poucos meses depois da morte da sua fi lha mais velha, também jornalista e militante, num enfrentamento com as Forças Armadas, Walsh escreveu uma carta e um conto. Ele já vinha questionando a crescente orientação militarista e o abandono do trabalho de base pela direção dos Montoneros.

Começou a produzir cartas que assinava pessoalmente e colocava nas caixas de correio. Já não podia falar em nome de um coletivo, falava em nome próprio e assumia o risco. No conto que escreveu naquela noite, Juan se iba por el río, um gaúcho atravessava o rio da Prata a cavalo durante uma maré baixa excepcional. O relato acaba com Juan no meio do leito e a maré subindo.

Profecia

A carta era um balanço do primeiro ano do governo militar. Não coincidia com a avaliação de Montoneros. Walsh via a repressão como parte de uma estratégia para desmontar a economia nacional e submeter as forças produtivas aos interesses imperialistas. Era um diagnóstico precoce do que aconteceria ao longo dos anos seguintes. Termina o texto “sem a esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido”.

No dia seguinte, foi emboscado na rua. Respondeu com uma arma de pequeno calibre, que mais servia para evitar que o aprisionassem vivo. Seu corpo e os seus escritos inéditos desapareceram. As cartas pessoais procuravam recuperar aquilo que ele tinha experimentado com Operação Massacre: queria se dirigir não aos heróis de cinemas, mas aos homens e às mulheres comuns que ousassem um gesto de liberdade.

Operação Massacre acaba de ser publicada em português. A sua leitura é uma oportunidade para que nos apropriemos dos procedimentos de investigação de Walsh e da sua escrita de alta efi ciência literária e militante.

Silvia Adoue é argentina radicada no Brasil,
mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo,
doutora em literatura latinoamericana pela FFLCH-USP e
professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

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