terça-feira, 26 de agosto de 2025

As redes sociais e o Eu como mercadoria


"Quando o “eu” se transforma em ativo comercial, o risco não é apenas a alienação individual — é a desfiguração do espaço público e da democracia. Regular as plataformas é reumanizar o debate. É restituir ao cidadão a dignidade da palavra. E à política, o compromisso com o bem comum."


Por Israel Fernando de C. Bayma*

 

            Bem, pode-se até dizer que a Internet, desde os seus primórdios, surgiu como tecnologia para conexão de pessoas e com total liberdade de expressão, sem nenhum tipo de controle. Podemos ser categóricos: as redes sociais digitais, não. Já surgiram em plataformas de conexão e controle pelos seus proprietários e, sob essa fachada,  passaram a operar como máquinas de despojo da subjetividade humana. Em vez de simplesmente promoverem a comunicação, elas convertem emoções, desejos e a intimidade do indivíduo em mercadorias digitais.

            Nas redes sociais prevalece a banalização da intimidade com um grau extremo de mercantilização da vida íntima no capitalismo contemporâneo. Há uma lógica de mercantilização que transforma a vida íntima em commodity. E, nesse contexto, não é o corpo que está à venda, mas o tempo psíquico, o afeto, o desejo de reconhecimento e a autoimagem performada.

            As explicações para o que ocorre podem ser encontradas tanto em Marx como em formas mais ampliadas de pensadores como Zuboff, Fuchs, Bauman e Han.

            Em A Comunicação Social Eletrônica na Constituição de 1988, defendi que as redes sociais digitais, por sua natureza de difusão pública e alcance massivo, devem ser compreendidas como meios de comunicação social eletrônica — e, por isso, sujeitas ao regime jurídico de regulação previsto no art. 222, § 3.º, da Constituição de 1988. Esse dispositivo, embora positivado na Constituição, é uma norma de eficácia limitada, pois depende de lei específica regulamentadora para fixação dos parâmetros de eficácia jurídica – aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade normativa. Isso justifica a insistência para que seja elaborada uma norma regulamentadora das redes sociais digitais.

            Enquanto isso, em linha complementar, em Que Tal Retirar o Véu dos Algoritmos das Platafor­mas Digitais? , defendi que os algoritmos, ao operarem como filtros invisíveis da in­formação, es­truturam o debate público e têm interferido na formação da opinião e, por isso, também de­veriam estar su­jeitos a princípios constitucionais como transparência, pluralismo e controle democrático.

            Há mais de 15 anos, em uma entrevista concedida à revista do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), manifestei o meu receio de que a Internet viesse a ser dominada pelas grandes corporações multinacionais.

            Hoje estamos em um cenário pior do que ter a Internet controlada pelas corporações. Há uma constatação mais ampla: nas redes sociais, a subjetividade humana está convertida em mercadoria. A vida íntima, os afetos, o desejo de reconhecimento e até mesmo o ócio das pessoas estão sendo empacotados nas chamadas redes sociais em formatos digitalmente comercializáveis.

            Shoshana Zuboff definiu tudo isso como capitalismo de vigilância, conceito desenvolvido inicialmente em seu artigo “Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization” (Journal of Information Technology, 2015), e posteriormente aprofundado no livro The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power (2021).

            Para mim, é uma alienação contemporânea que pode ser compreendida também à luz de Marx, em Manuscritos Econômico-Filosóficos e O Capital – Livro 1, onde o pensador alemão denuncia a perda do “ser genérico” do trabalhador sob o regime da mais-valia. Nesse ambiente digital das redes sociais não apenas o conteúdo é alienado: o próprio sujeito é transformado em capital simbólico e emocional, explorado pelas plataformas das redes sociais que lucram com sua atenção, seu afeto e seus dados pessoais.

            Já Christian Fuchs denomina esse fenômeno play labour (trabalho-lazer) - “expressão de um novo espírito/ideologia do capitalismo” - em sua obra Social Media: A Critical Introduction (2014), explicando que o trabalho invisível da interação nas redes, embora pareça lazer, alimenta um sistema que extrai valor sem remuneração.

            As “liquidezes” de Zygmunt Bauman, em Vida para Consumo (2008) e Amor Líquido (2008), também observam que, na modernidade líquida, a identidade se dissolve em performances adaptáveis. “Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade”, afirma Bauman. São as “comunidades de ocasião” construídas em torno de eventos, lives,  influencers.

            Byung-Chul Han radicaliza esse ponto em Psicopolítica (2014) e A Sociedade do Cansaço: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2015). O sujeito de desempenho tornou-se explorador e explorado de si mesmo. “É quantificável, mensurável e controlável.” Vive sob a coação de maximizar sua presença, sua imagem, seu engajamento.

            Hoje, nas redes sociais tudo é espetáculo, a política virou meme, a dor virou conteúdo, e a existência virou interface. A direita brasileira – que continua reacionária - compreendeu isso. Aprendeu a operar nesse ecossistema emocional, onde o carisma vale mais que o conteúdo, e a viralidade mais que a coerência ou a verdade. Onde a lógica opaca e mercantilizada tem servido como canal de desinformação, radicalização e manipulação política, como nos episódios envolvendo o apoio indireto que dão ao atual presidente norte-americano. Há uma instrumentalização do espaço digital das redes sociais incompatível com uma regulação verdadeiramente democrática.

            Por outro lado, até recentemente, a esquerda brasileira parecia estar presa a uma lógica discursiva racional, falava, mas não engajava. Sabia, mas ainda pouco tinha conseguido reverberar. No entanto, hoje, os dados são mais claros: a imposição estapafúrdia de uma sobretaxa do presidente norte-americano contra as exportações brasileiras detonou uma reação em cadeia. O episódio não apenas amplificou exponencialmente a presença da esquerda nas redes sociais, como ecoou globalmente – com cobertura crítica nos grandes jornalões nacionais e estrangeiros que destacaram o caráter predatório da medida e expuseram os interesses da direita brasileira que a articularam.

            Nas plataformas das redes sociais, o crescimento de inserções positivas foi explosivo: menções positivas à esquerda e ao Governo brasileiro dispararam, vinculando a crise comercial ao projeto da direita mundial de desmonte soberano. Virou caso emblemático de como uma ofensa econômica pode, quando bem contestada, converter-se em capital político digital. Qual foi a diferença desta vez? A esquerda soube transformar números frios – os bilhões de dólares em perdas – em narrativa bem conduzida sobre defesa da soberania e da resistência do povo brasileiro.

            Pela primeira vez em anos, nas redes sociais, a esquerda brasileira não apenas reagiu – mas ditou os termos do debate, convertendo uma agressão política e econômica em capital político digital. Vejo que a regulação democrática das plataformas das redes sociais se torna urgente. O ambiente informacional contemporâneo exige regras. Regras que submetam os algoritmos à Constituição Federal de 1988, como propus em meus trabalhos anteriores. Regras que impeçam que a liberdade de expressão seja capturada por modelos de negócio que favorecem o ódio, o extremismo e a manipulação. Regras de auditoria algorítmica, por exemplo. Precisamos resgatar a fala como espaço de alteridade, a escuta como ato político, e a comunicação como direito — não como mercadoria.

            Quando o “eu” se transforma em ativo comercial, o risco não é apenas a alienação individual — é a desfiguração do espaço público e da democracia. Regular as plataformas é reumanizar o debate. É restituir ao cidadão a dignidade da palavra. E à política, o compromisso com o bem comum.

 

* Engenheiro eletrônico e advogado.